domingo, 17 de novembro de 2024

Impressionismo nocturno

Vivo num silêncio incompleto, 
cheio de palavras que 
não é tempo de dizer;
espero a construção 
de uma catedral de silêncio
perfeito e imenso, 
que há-de inundar tudo
e inaugurar a escrita. 
Até lá procuro a noite 
à beira da falésia,
o ruído do mar sob 
o Cisne como um barco
em que hei-de embarcar,
e as minhas palavras não pertencem
aos amigos, aos convivas,
mas à escrita concretizada
nessas grandes marés.
Ou só ao espaço 
imperfeito e quotidiano
onde a escrita se constrói 
ainda que não se realize.
Ainda que fique por aqui, 
numa espera onde só de
muito em muito tempo 
se avista o outro lugar, 
será uma realização fulgurante 
da minha vida,
de resto alheia e distraída 
entre os comensais,
sempre demasiado longe do mar
que ruge às duas da manhã.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Personagens sem contos

Tinha um aspecto que misturava ar de filha do meio esquecida de uma nobreza empobrecida, e o ar acossado de alguém que cresceu na miséria sórdida e que nunca, por mais anos de bonança que viva, consegue livrar-se da sensação de ser uma impostora no meio do mundo civilizado. O seu estilo era a imagem fiel e transparente disto, para quem soubesse lê-lo: roupa de bom corte e gosto excepcional, mas muito coçada ou barata: umas botas de boa pele demasiado deformadas pelo uso, uma blusa de corte impecável mas de má qualidade que escondia buracos remendados demasiadas vezes. Mas a sua tragédia era sobretudo visível no peso patético e desesperado de um rosto que se julga desprezível, como se carregasse um pecado ou vergonha inapagável, e que manchava o que poderia ter sido uma presença fulgurante, entre a maquilhagem e cabelo de mulher fatal e a roupa anacrónica, fora do tempo, de uma elegância desusada e quase austera. Tantas mulheres matariam por essa capacidade de impôr uma presença que não dependia da beleza, da sorte na lotaria do rosto, e ela desperdiçava-a em vergonha de existir. Era incompreensível, uma vez que o seu aspecto era uma vitória sua, uma criação nascida do desespero de amor à vida que a atormentava e alimentava. E no entanto não conseguia colher os louros dessa criação que seria, em qualquer outra pessoa, um triunfo da vontade.

Cerco

“Dos cânticos, resta quase nenhuma sonoridade: um monge a escrever no avesso do século.”
Vasco Graça Moura

O que pode uma casa
numa cidade transitória,
num exílio desejado e ressentido?
É um sótão sem tesouros,
um ninho no chão
ou uma torre de astrónomo?
O que pode uma casa
numa cidade passageira
em que se vive como um viajante
retido num cerco?
Passo o tempo em conversa
com fantasmas, guardiões,
escribas no avesso dos séculos;
meço os passos sob a abóbada
estrelada da nossa memória
de cidades e de pó.

Concêntricos

O poema:
aproximações sucessivas
ao sagrado. um seixo
que perturba várias vezes
a superfície tensa do mistério
e depois se afunda

Igreja de Santa Madalena

Sobe as escadas da igreja velha
solene no centro da cidade
entre turistas e locais irritados
mas não entres
É no átrio a meio caminho
entre silêncio e eléctricos apinhados,
é na casa de ferramentas comida pela vegetação,
no tanque de pedra de uma casa senhorial
tomada pelo musgo e pela imensidão
nas suas águas verde-escuro
que perturbas com uma pedra
para quebrar o feitiço do sagrado
que avança nas hastes das heras
e te assusta,
que me encontrarás.

Yes, I dream of the Central Line

“I understand how the Underground can become an essential part of the personality. My dreams and memories have always been associated with the Central Line. I was brought up in East Acton, and educated at a school in Ealing Broadway. At various points of my early life I lived at Shepherd’s Bush, Queensway and Notting Hill Gate. When I worked in an office I alighted from the train at Tottenham Court Road and then, at a later date, at Holborn or Chancery Lane. The Central Line was one of the boundaries or lines of my life. Now that I am beyond its reach, I feel free. Yet, like the escaped prisoner yearning for his dungeon, I often dream of the Underground. I dream of lines going to improbable destinations all over the world. I dream of strange encounters on platforms with people I seem to know. I dream of coming up for air and being confronted by a transformed cityscape. I dream of running down passages in search of a platform. I dream of gliding down vast escalators. I dream of crossing the live rails from platform to platform. I dream of standing unsteadily in a carriage as it rattles along. And, yes, I dream of the Central Line.”

Peter Ackroyd, London Under: The Secret History Beneath The Streets

Que em si depositaram

“foi escutando as invulgares mensagens que Deus em si depositou; a dos instantes, a da poesia, da música, da pintura e a de todas as artes, a dos textos sagrados e a dos sonhos, que no fundo da sua inteligência-coração-memória se interpenetraram, fundiram e puseram em movimento (...). Os símbolos dos sonhos, dos mitos, das imagens arquetípicas foram-se tornando angulares na sua existência”

Introdução a “Crónicas: Imagens Proféticas e Outras” de João Bénard da Costa