domingo, 18 de julho de 2021

Lisbon stories


















"O Ganges passa também pela Rua dos Douradores. Todas as épocas estão neste quarto estreito - a mistura a sucessão multicolor das maneiras, as distâncias dos povos, e a vasta variedade das nações.

E ali, em êxtase, numa só rua, sei esperar a Morte entre gládios e ameias."


 
Livro do Desassossego, Bernardo Soares

terça-feira, 11 de maio de 2021

In the light from conflagrations

Fiquei a conhecer há dias a história de Lidice, aldeia desaparecida da antiga Boémia. Como resposta à Operação Anthropoid (tentativa de assassinato do oficial nazi Reinhard Heydrich, por membros da resistência Checa, em 1942), a aldeia foi apagada do mapa. E o termo "apagada" não é um exagero: todos os homens com mais de quinze anos foram executados; as mulheres foram enviadas para campos de concentração, depois de terem sido feitos abortos às que estavam grávidas; também as crianças (com excepção de sete, entregues a famílias das SS para serem "germanizadas)" foram enviadas para campos de concentração; pelo menos 82 foram assassinadas numa câmara de gás. Todos os animais, de estimação ou do campo, foram abatidos. A cidade foi incendiada e arrasada com explosivos, e os escombros foram removidos. A estrada e o rio que passavam pela aldeia foram desviados. O cemitério foi destruído, tal como os restos mortais de todos os que lá estavam enterrados. Estes eventos foram filmados e difundidos com orgulho.
O catálogo de horrores dos nazis é imenso, mas eu não consigo parar de pensar em Lidice. Camus diz que o regime nazi, para lá da aparência de racionalidade fria e brutal, era profundamente irracional, e acho que concordo, e que é isso que me perturba tanto aqui. Em primeiro lugar, porque a racionalidade tem limites, mas o irracional não. Um ódio assim inunda tudo, consome tudo, oblitera tudo; não deixa espaço para mais nada a não ser para si mesmo. Lidice não passou a ser um espaço vazio; ao destruir qualquer prova da sua existência, os nazis encheram esse espaço com o seu ódio e fanatismo até não caber mais nada. Lidice, a aldeia que não existe, é um dos lugares mais cheios do mundo, até à claustrofobia, até ao sufoco. 
Em segundo lugar, porque embora seja fácil termos a certeza de que nunca seriamos capazes de fazer ou compactuar com nada sequer remotamente semelhante, penso que todo o ódio obedece a mecanismos semelhantes, seja o horror nazi ou as meras larvas - sementes do ódio - da mesquinhez, do ressentimento, do cansaço - de quaisquer que sejam as larvas que crescem no coração de cada um, sem que lhes atribuamos importância. É claro que o tamanho do ódio, o seu contexto e consequências, importam; mas reconheço em tantas das suas manifestações o mesmo gesto básico e irracional de apagamento violento daquilo que nos afronta, seja pela destruição, fuga ou indiferença. E se acham que estão isentos dos mecanismos do ódio, se não reconhecem que a sua semente se pode pôr em movimento por tão pouco, tão mesquinhamente pouco, parabéns, as vossas larvas agradecem-vos. Eu penso no meu cansaço, na minha fuga, em certos pesadelos recorrentes, e parece-me que "eu nunca" é uma boa maneira de já estar a meio caminho.
A Segunda Guerra Mundial passou, mas não sei se alguma vez deixámos de viver, como diz Camus acerca dessa altura, à luz das explosões - e à sombra dos negrumes que elas nos revelaram acerca de nós mesmos. Seria bonito, mas escolher a luz de Tipasa ou de Sophia não chega para exorcizar o ódio. Se é necessário gravar Tipasa na pele, talvez seja necessário gravar também Lidice. Uma em cada pulso, uma de cada lado do coração.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

In the light from conflagrations

O desencanto levanta um muro entre mim e as coisas a que pertenço. Não há-de durar. Não por mim (dificilmente por mim), mas pelas coisas, que merecem ser celebradas. Nesta vida de absurdos e pequenez há, ainda assim, a possibilidade de êxtase, praias desertas, uma passagem de Camus que me salva, uma certa Lisboa, Londres, a aldeia da minha Mãe, os livros, Kavafis, "Uma Carta no Inverno" e "Nocturno de Malmö" do V.G.M., "Return to the Moon" dos El Vy, Astor Piazzolla, Musil, cerejas, Woolf, entardeceres de Verão, museus, um verniz rosa-claro com brilhos dourados, igrejas e capelas onde há silêncio e luz, o Malhadal, o pinhal atrás da casa da minha Avó, livros de arte, poemas sobre gatos. Não sou só o puro corpo de visão e testemunho que reconheci ser na minha primeira praia; sou um instrumento de êxtase e celebração.

In the light from conflagrations

"A special grace, self-forgetfulness, or a homeland." Como é sempre o caso comigo, a opção impossível é a única que está ao meu alcance. E, como é sempre o caso comigo, enquanto for a que mais me interessa, é porque não está tudo perdido.

In the light from conflagrations

"Originally innocent without knowing it, we were now guilty without meaning to be: the mystery was increasing with our knowledge. This is why, O mockery, we were concerned with morality. Weak and disabled, I was dreaming of virtue! In the days of innocence I didn’t even know that morality existed. I knew it now, and I was not capable of living up to its standard. On the promontory that I used to love, among the wet columns of the ruined temple, I seemed to be walking behind someone whose steps I could still hear on the stone slabs and mosaics, but whom I should never again overtake. I went back to Paris and remained several years before returning home. Yet I obscurely missed something during all those years.
When one has once had the good luck to love intensely, life is spent in trying to recapture that ardor and that illumination. Forsaking beauty and the sensual happiness attached to it, exclusively serving misfortune, calls for a nobility I lack. (...) These are the days of exile, of desiccated life, of dead souls. To come alive again, one needs a special grace, self-forgetfulness, or a homeland. Certain mornings, on turning a corner, a delightful dew falls on the heart and then evaporates. But its coolness remains, and this is what the heart requires always. I had to set out again."

Return to Tipasa, Albert Camus

EL VY, "Sad Case / Happiness, Missouri"

EL VY, "Need a Friend"

domingo, 4 de abril de 2021

O deus abandona António

Se, abruptamente, à meia-noite ouvires
um tíaso invisível a passar,
com músicas divinas e algazarra -
a tua fraca sorte, as tuas obras
frustradas, os teus planos que afinal
eram miragens, não os lamentes em vão.
Como se há muito pronto, como um bravo,
despede-te da Alexandria que te foge.
E, sobretudo, não te enganes, e não digas
que te mente o ouvido; não consintas
albergar essas ocas esperanças.
Como se há muito pronto, como um bravo;
como cabe a quem merece tal cidade,
vai, chega-te à janela resoluto
e ouve com emoção, mas não com
os prantos e os protestos dos cobardes,
num último deleite, os sons lá fora,
a divina toada do cortejo oculto e
diz adeus à Alexandria que vais perder.


Konstantinos Kavafis (trad. Manuel Resende)

terça-feira, 16 de março de 2021

A possibilidade da escrita

Finalmente encontrei a minha possibilidade de escrita, numa era em que escrever é absolutamente inútil. (Sempre o foi, eu sei, mas também é verdade que os tempos não são todos iguais. De qualquer modo, "não é grave", diria Agustina, e teria razão.)

Arestas

A minha personalidade é composta, em parte significativa, por pares de contrários, cujos termos me são igualmente necessários. Ao contrário do que se poderia imaginar, os problemas não chegam pela difícil convivência dos opostos, mas quando, por algum motivo, me convenço de que tenho a obrigação de os aplanar, ou de escolher um dos lados. Ainda está para chegar o dia em que a média do que quer que seja me traga alegria, e tentá-lo é uma quadratura do círculo muito mais esgotante e estéril que a vivência quotidiana com desejos, pulsões ou medos que puxam para lados opostos. Até porque renegar um dos termos, em vez de trazer paz de espírito, traz também a destruição do outro termo - e a minha.
Obviamente os lados cruzam-se, conversam, contagiam-se, e é nessa intersecção que estão os frutos. Mas para que isso aconteça preciso de olhar ao espelho e ver as arestas límpidas e definidas de cada lado, teimosas contra a massa amorfa da mediania, e dos terrenos aplanados pelas tentações do sossego e da compreensão dos outros.

Kitsch português / margem sul

A minha quarentena é passada num subúrbio onde as árvores são chatices indesejáveis, os prédios parecem construídos de propósito para minimizar a entrada de luz nas casas, há dezenas de máscaras descartáveis no chão nas paragens de autocarros, e a relva dos poucos jardins que existem está repleta de restos do Macdonald's. 
Sonho dia e noite com o mar. A rede de estradas secundárias e atalhos entre a Lagoa de Albufeira e o Cabo Espichel está repleta de descampados que se tornam bonitos com o sol glorioso de um fim de tarde de Verão e com a promessa de mar, e de casas tão feias que se tornam tristes. Há uma que tem um grande quintal numa colina, totalmente semeado de sanitas e bidés velhos, às dezenas. Lembro-me, por exemplo, das fotografias de casas portuguesas nos subúrbios e na costa, da saudosa Luísa Cortesão,  e penso que amamos o feio (e possivelmente ofendemo-nos com quem o reconhece por esse nome), porque não há, nessa extensa mistura de subúrbios e descampados com lixo que caracteriza parte significativa deste país, muito mais que se possa amar. Há o nosso mar imenso e o seu céu e sol, certo. Mas o lixo e a feiura triste têm uma maneira perniciosa de se espalhar, e no fim do dia deixaram a Sophia fora do cânone, e há dias em que, aqui, não existe mais que isto.
Há sempre uma altura, no cansaço do Inverno, em que sou tomada por uma espécie de loucura que me faz duvidar da existência continuada do sol e da possibilidade do Verão. Há dois anos a lucidez já teria voltado, com os primeiros dias de sol, as primeiras árvores floridas numa das minhas serras, e a primeira vez em que antecipo, ainda com as mantas todas na cama, o primeiro mergulho naquela praia inicial, mais a norte. Este ano a ilusão permanece para lá do seu tempo, e preciso de um esforço consciente para que não se misture com o cansaço deste dia 440 de 2020. Tenho medo: quanto tempo até os subúrbios me engolirem de vez, e eu perder as minhas rotas? Até perder a praia atlântica que é para mim a primeira; a outra, num enseada escondida, onde o pôr do sol é mais bonito; a da minha infância, com relva e eucaliptos para as sestas; certas piscinas de rocha protegidas da rebentação; o lugar exacto no areal para conversas até às tantas com um termo de chá, sob uma chuva de estrelas cadentes.
Todas as noites atravesso em sonhos a paisagem desolada, em busca desse mar que é uma necessidade e uma obsessão. Por agora ainda lá chego, a essas praias secretas que nomeio em silêncio, para que o lixo não as invada, e ainda sou capaz de celebrar os descampados, mesmo com bidés, pelos caminhos que me conduzem até ao mar, pela luz nas ervas numa tarde de Verão. Desde que a sede não nos abandone e os caminhos não nos expulsem, escrevi há uns anos. Rezo aos meus deuses (Sophia, Ariadne de Naxos, Severa) para que assim continue.

Dá-lhes, Scorsese

«Curating isn’t undemocratic or “elitist,” a term that is now used so often that it’s become meaningless. It’s an act of generosity—you’re sharing what you love and what has inspired you. (The best streaming platforms, such as the Criterion Channel and MUBI and traditional outlets such as TCM, are based on curating—they’re actually curated.) Algorithms, by definition, are based on calculations that treat the viewer as a consumer and nothing else.
The choices made by distributors such as Amos Vogel at Grove Press back in the Sixties were not just acts of generosity but, quite often, of bravery.»

Il Maestro, Martin Scorsese

domingo, 7 de março de 2021

Presciência & intenção

Podia passar dias e dias a analisar as intenções de Jean-Luc Godard em La Chinoise, a tentar perceber quanto daquela sátira foi intencional, e quanto é fruto da minha leitura contemporânea e anacrónica, informada pelo conhecimento que hoje temos das atrocidades dos regimes comunistas russo e chinês, e da esterilidade de movimentos como o Maio de 68.
Mas interessa-me mais a presciência de algumas cenas, como aquela em que a personagem de Léaud elimina escritores e dramaturgos um a um, sem piedade, até não sobrar nada a não ser Brecht. Ele que se cuide, porque as redes sociais que papagueiam chavões de extrema-esquerda cujas implicações estão longe de perceber (e que não têm interesse nenhum em viver na pele), ainda só não apagaram Brecht porque não sabem que ele existe (é dar-lhes tempo, não tenho dúvidas que lá chegarão e que as suas razões para o eliminar serão magníficas). Perante cenas como esta, ou passagens como aquela, n'O Homem Sem Qualidades, em que Ulrich finalmente desiste de tentar chegar a algum lado depois de ouvir falar do "génio" de um cavalo de corrida, pergunto-me se isso a que chamamos presciência não será simplesmente o resultado de fazer aquilo de que hoje poucos parecem capazes: perseguir uma ideologia, um movimento, uma ideia até às suas últimas consequências, e falar com honestidade acerca do lugar onde isso nos  leva. 
Enquanto Musil o faz de forma irónica, crítica e desencantada, Godard está engajado. E eu acho que as consequências últimas daquilo que ele defende são inaceitáveis, mas não tenho a certeza que a postura acrítica e auto-congratulatória que o filme (voluntariamente ou não) mostra e profetiza, nas suas personagens, seja mais inócua. E acho que é isso que me perturba tanto neste filme: dar por mim a quase respeitar mais um realizador que defende o que tenho como inaceitável, porque o faz em consciência, que toda essa multidão passada e presente de "pessoas que aprenderam a falar com ovelhas", que defendem os mesmos princípios que ele, mas sem um pingo de auto-consciência, nem a coragem ou capacidade de levar um raciocínio até ao fim. O que é um raciocínio perigoso da minha parte, se o levar até ao fim. Eu sei, acreditem.



 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Ruínas


A great Hope
fell
You heard no
noise
The Ruin was
within
Oh cunning
Wreck
That told no
Tale
And let no
Witness in

Emily Dickinson (fac-símile aqui)

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Detectives

O filme Baisers Volés, do François Truffaut, tem das melhores cenas de comédia que já vi: um homem dirige-se a uma agência de detectives privados porque tem a sensação de que ninguém o suporta, e quer saber porquê. A genialidade está, naturalmente, em que o homem ainda mal começou a falar e já não gostamos dele. O dono da firma esconde o riso, e põe o seu pior agente no caso. Nós somos mais ou menos como este homem: no fundo sabemos a resposta, mas contratamos os detectives na mesma, na esperança de que desmintam as nossas suspeitas. A vida esconde o riso e põe o seu pior agente no caso - somos nós. Só não sei se isso é uma sacanice ou uma caridade que nos faz.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O que é um escritor? Alguém que dedica a vida inteira a tentar contar por outras palavras, outras histórias tangenciais, aquela história que precisava de contar e não pode.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Joan Margarit (1938 - 2021)

 
 
 
Eu sei que o tempo tem o seu curso, mas há perdas que pesam muito. Esta será ultrapassada com a imensidão da sua poesia, que fica e há de ficar. Não tenho dúvidas de que Joan Margarit é dos grandes - imenso - da nossa era. Obrigada por tanto, Joan.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Cidade

Enquanto escolhia uma imagem para acompanhar outro post, percorri um conjunto de fotografias minhas que juntei sobre o tema "Cidade." E emocionei-me, porque depois de tantos meses em casa os lugares que amamos (e de que precisamos) são engolidos por uma névoa que, dado tempo suficiente, nos faz duvidar da possibilidade de reencontro. Foi bom reencontrar a Cidade intacta no seu poder evocativo, feito de caos e beleza e desassossego e múltiplas possibilidades de sentido. Há dias angustiantes, mesmo quando posso perder umas horas a procurar ruelas e portas abertas em prédios onde subo até ao último andar (é lá, junto da clarabóia, que está a luz que vale a pena fotografar); mas andar por aí em dias de melancolia ou zanga é também procurar um espaço em que talvez esse desassossego se possa transfigurar. 
Eu fotografo sem técnica nenhuma, instintivamente, o que faz com que muitas vezes experimente uma alegria muito imediata e poderosa no momento em que tiro uma fotografia, e frustração quando a revejo em casa; muitas esperam vários meses ou anos até as escolher e editar. Mas foi bom que aqui há uns tempos me tenha lembrado de juntar (mais uma vez: por instinto, a eito) as que cabem neste tema. Algumas ganham relevância que na altura da edição não reconheci, e já se sabe que ligar pontos aparentemente díspares cria relações e significados que podem transformar as partes.
E isto recorda-me uma passagem breve das "Passagens de Paris" do Walter Benjamim: 
 
«Museu Grévin: Cabinet de Mirages. Aí se apresenta a relação entre o templo, estação, Passagens, mercados onde se vende carne putrefacta (fosforescente). A ópera na Passagem. Catacumba na Passagem.» 
 
Lembro-me também do Borges e de
 
«certa enciclopédia chinesa que se intitula "Empório de Conhecimentos Benévolos." Nas suas remotíssimas páginas está escrito que os animais se divididem em: (a) pertencentes ao imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vadios, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) incontáveis, (k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, (l), etc..., (m) que acabam de quebrar o jarrão, (n), que ao longe parecem moscas.»

Há alguma coisa que me maravilha nas enumerações, especialmente as que ligam coisas díspares. Exactamente porque estabelecem sentido onde ele não existe, ou onde não o reconhecíamos; e quanto mais absurda é a linha que liga os elementos, maior é o fascínio. É aí, no facto de que isso não devia funcionar e funciona, nas enumerações que se impõem à revelia do que qualquer ordem reconhecível sanciona, que está o centro da magia. Aceitamos (apesar das nossas esperanças, de forma mais ou menos ressentida) que mesmo nos fundos da imaginação não existe criação a partir do nada - o monstro mais sensacional é ainda uma soma de partes reconhecíveis. Gosto das enumerações e catalogações absurdas porque serão talvez do que mais se pode aproximar de uma criação absoluta e livre: são fios que se tecem por teimosia da vontade, sem o menor esforço de criar narrativas justificativas sensatas. O sentido vem sempre depois, e é sempre espantoso, e apanha-nos sempre de surpresa. Não sei se só no absurdo poderá haver este tipo de criação, ou se se trata apenas do poético por outro nome, nem me interessa muito transformar isto numa teoria. Sei apenas que há algo incrível neste ponto em que a vontade de ordenar o universo e a pura subjectividade se encontram.
Talvez por isso as imagens que hoje percorri me tenham emocionado: juntá-las teve tanto de propósito como de errância. E só assim elas poderiam transfigurar uma narrativa às vezes demasiado preocupada com a biografia e os sentidos últimos, em algo com a capacidade de me surpreender e contar algo novo. Talvez o melhor das cidades é que possam ser como os livros, segundo a Fran Leibowitz: mais portas que espelhos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Espelhos ou portas

 "Pretend It's a City" (Ep. 7) | Martin Scorcese & Fran Lebowitz

domingo, 24 de janeiro de 2021

A minha definição do sagrado



O inesperado / indómito que entra pelas nossas construções e certezas dentro. Faz soar os alarmes e o maravilhamento. No meu imaginário pessoal, remete-me tanto para certas capelas rústicas e vazias, perdidas nos ermos, como para o Espírito da Floresta da Princesa Mononoke. Quando irrompe pelas igrejas, pela arte, pela natureza, pelo êxtase, pelo sofrimento, não deixa muito de pé: nem as instituições que se deixaram esvaziar de significado, nem as revoluções de trazer por casa. São ambas caricaturas tristes do espírito.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Notas de um bicho do mato

I.
“All of us have to learn how to invent our lives, make them up, imagine them. We need to be taught these skills; we need guides to show us how. If we don’t, our lives get made up for us by other people.” 


II.
To know yourself means, above all, to know your desire. Desires are what lurk at the heart of our behavior. It’s what determines our motivations. It’s what organizes our social relations. It’s what informs our politics, religions, ideologies, and above all, our conflicts. ... Girard began his work in the 1960s with a new concept of human desire: our desires are not our own, he said, we are social creatures, and we learn what to want from each other." 


III.
"Difficult women aren’t all swashbuckling extroverts who shoot off their mouths and shout down their adversaries. Sometimes they just sit quietly and refuse to pretend to be agreeable… So genteel, yet so impressively difficult."


IV.
"Repentance keeps my heart impure."


_______
I. The Wave in the Mind, Ursula K. Le Guin
II. Na página da entrevista a René Girard, no programa "Entitled Opinions". Disponível aqui.
III. In Praise of Difficult Women, Karen Karbo
IV. Stream and Sun at Glendalough (excerto), W.B. Yeats

Gasolina & t-shirts

Desconfio instintivamente das dinâmicas de grupo. Os consensos instantâneos e incontestados parecem-me quase sempre um veículo eficaz para espalhar a falta de sentido crítico e, à sua boleia, o conformismo; e essa falta de sentido crítico tem tendência a ser tanto maior quanto mais os elementos do grupo acreditam estar imunes a essa possibilidade e protegidos pela sua própria inteligência. Até um bicho do mato como eu tem necessidade de pertença, e estas minhas reticências deixam-me muitas vezes mais isolada do que gostaria. Mas depois há momentos em que vejo uma multidão a tentar apagar fogos com gasolina, que recebeu das mãos de alguém. Ninguém se lembra de olhar para o balde antes de o passar em frente, e eu tenho dificuldade em não ceder à tentação de encolher os ombros e afastar-me para onde as brasas não cheguem.

Nos seminários de História Moderna e Contemporânea do meu mestrado, as narrativas sobre a modernidade eram geralmente enquadradas na transformação fundamental de uma sociedade comunitária para uma sociedade individualista, e no que isso tivera tanto de libertador como de trágico. Os meus professores, e os autores que li, têm um grande sentido crítico, e as suas leituras dos acontecimentos pareceram-me bastante certeiras e límpidas. Mas creio que a sua análise já não descreve justamente os dias de hoje, e que estamos a caminhar para uma era intrinsecamente social; diferente da era pré-moderna, porque em vez de a validação pessoal ser dada pela religião, tradição e comunidades, é procurada nos consensos instantâneos que o indivíduo espera obter com performances públicas. Não é um retorno à era pré-moderna: social e comunitário não são necessariamente a mesma coisa, e a performance não é um acto, é uma aparência de acto.

Quanto ao episódio oh-tão-radical do Conan Osíris a dançar numa igreja, lembro-me de um festival de Verão, há muitos anos, em que um amigo meu achou que as t-shirts da moda desse ano, com o rosto de Cristo e a frase "kill your idols", eram a coisa mais radical e iconoclasta que já se tinha inventado. "Concordas com essa ideia?" Respondeu-me que claro que sim. "E Cristo é um ídolo teu?" Claro que não. "Então a t-shirt não devia ter uma imagem de um ídolo teu? Ou estás isento do que prescreves aos outros?" O meu amigo não comprou a t-shirt, e não me falou o resto da tarde. Nada de novo debaixo do sol.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Trinta e sete

Hoje descobri que partilho o meu dia de anos com o Hayao Miyazaki, que admiro muito. Será um fait-divers, mas foi mais um pequeno facto feliz num dia sereno e solarengo, em que passeei ao sol, descobri um alfarrabista barato e com uma boa selecção, e comprei as primeiras flores do ano. Se há coisa que o ano passado me ensinou é que prognósticos, só no fim do jogo, mas foi um bom começo, e por hoje isso chega.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

*

 O espanto da Alice e a perversidade da Rainha.

Balanço

Balanço pessoal de 2020: "agora a minha solidão vê-se melhor." Por outro lado, neste espaço tão vasto também se vêem melhor as estrelas. Vazio e luz, portanto. Como sempre.
 
 







© Inês C. | 2020