sábado, 6 de fevereiro de 2021

Cidade

Enquanto escolhia uma imagem para acompanhar outro post, percorri um conjunto de fotografias minhas que juntei sobre o tema "Cidade." E emocionei-me, porque depois de tantos meses em casa os lugares que amamos (e de que precisamos) são engolidos por uma névoa que, dado tempo suficiente, nos faz duvidar da possibilidade de reencontro. Foi bom reencontrar a Cidade intacta no seu poder evocativo, feito de caos e beleza e desassossego e múltiplas possibilidades de sentido. Há dias angustiantes, mesmo quando posso perder umas horas a procurar ruelas e portas abertas em prédios onde subo até ao último andar (é lá, junto da clarabóia, que está a luz que vale a pena fotografar); mas andar por aí em dias de melancolia ou zanga é também procurar um espaço em que talvez esse desassossego se possa transfigurar. 
Eu fotografo sem técnica nenhuma, instintivamente, o que faz com que muitas vezes experimente uma alegria muito imediata e poderosa no momento em que tiro uma fotografia, e frustração quando a revejo em casa; muitas esperam vários meses ou anos até as escolher e editar. Mas foi bom que aqui há uns tempos me tenha lembrado de juntar (mais uma vez: por instinto, a eito) as que cabem neste tema. Algumas ganham relevância que na altura da edição não reconheci, e já se sabe que ligar pontos aparentemente díspares cria relações e significados que podem transformar as partes.
E isto recorda-me uma passagem breve das "Passagens de Paris" do Walter Benjamim: 
 
«Museu Grévin: Cabinet de Mirages. Aí se apresenta a relação entre o templo, estação, Passagens, mercados onde se vende carne putrefacta (fosforescente). A ópera na Passagem. Catacumba na Passagem.» 
 
Lembro-me também do Borges e de
 
«certa enciclopédia chinesa que se intitula "Empório de Conhecimentos Benévolos." Nas suas remotíssimas páginas está escrito que os animais se divididem em: (a) pertencentes ao imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vadios, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) incontáveis, (k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, (l), etc..., (m) que acabam de quebrar o jarrão, (n), que ao longe parecem moscas.»

Há alguma coisa que me maravilha nas enumerações, especialmente as que ligam coisas díspares. Exactamente porque estabelecem sentido onde ele não existe, ou onde não o reconhecíamos; e quanto mais absurda é a linha que liga os elementos, maior é o fascínio. É aí, no facto de que isso não devia funcionar e funciona, nas enumerações que se impõem à revelia do que qualquer ordem reconhecível sanciona, que está o centro da magia. Aceitamos (apesar das nossas esperanças, de forma mais ou menos ressentida) que mesmo nos fundos da imaginação não existe criação a partir do nada - o monstro mais sensacional é ainda uma soma de partes reconhecíveis. Gosto das enumerações e catalogações absurdas porque serão talvez do que mais se pode aproximar de uma criação absoluta e livre: são fios que se tecem por teimosia da vontade, sem o menor esforço de criar narrativas justificativas sensatas. O sentido vem sempre depois, e é sempre espantoso, e apanha-nos sempre de surpresa. Não sei se só no absurdo poderá haver este tipo de criação, ou se se trata apenas do poético por outro nome, nem me interessa muito transformar isto numa teoria. Sei apenas que há algo incrível neste ponto em que a vontade de ordenar o universo e a pura subjectividade se encontram.
Talvez por isso as imagens que hoje percorri me tenham emocionado: juntá-las teve tanto de propósito como de errância. E só assim elas poderiam transfigurar uma narrativa às vezes demasiado preocupada com a biografia e os sentidos últimos, em algo com a capacidade de me surpreender e contar algo novo. Talvez o melhor das cidades é que possam ser como os livros, segundo a Fran Leibowitz: mais portas que espelhos.

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