sábado, 22 de outubro de 2022

Tolentino Mendonça

Percebo porque é que, mesmo com uma certa falta de sofisticação linguística, e uma boa quantidade de poemas falhados pelo meio (mas quantos livros de poesia portuguesa contemporânea não são um falhanço do princípio ao fim, falhanços pretensiosos e um pouco ridículos?), gosto tanto da poesia do Tolentino Mendonça. Em primeiro lugar pela melancolia e pelos bosques profundos, o verde escuro e a água que corre, sim; mas lá dentro vive uma forma muito específica de melancolia: a tentação, nunca eficazmente suprimida, de abandonar tudo e partir para muito longe, e a maneira como o espírito, preso no quotidiano, se refugia e consola nessa ideia de partida solitária, radical, de pontes voluntariamente queimadas. ("Nunca será bastante o incêndio": a inspiração do Daniel Faria parece-me óbvia, ou se calhar é só óbvia a influência de ambos em mim.)
Em segundo lugar a sua poesia religiosa atrai-me porque se o sentimento é cristão, as imagens são todas na linguagem do Antigo Testamento. O Cristianismo não tem mitos, e sabe Deus a falta que lhe fazem. Essa lacuna torna-o mais sensível à loucura da cristalização da tradição, e às imputações abusivas e mirabolantes de tudo e mais alguma coisa à revelação. O Antigo Testamento pode ser brutal, violento, essas coisas todas que sabemos, mas tem uma linguagem e uma poesia próprias, e é isso que o torna tão fascinante: entra no mistério pela mão do mito, chegando a um lugar a que o Evangelho não consegue, não pode aceder.
E o génio de Tolentino, nos poemas que funcionam, é perceber isto e oferecer a linguagem do Antigo Testamento ao pobre mistério cristão, iluminada e esclarecida por dois mil anos de história ocidental, e a percepção de Deus como Mistério e Ausência presente.

Lisbon stories (II)