segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Na faculdade tive um professor - lúcido, desassombrado e com a personagem de misantropo bem ensaiada; um "difícil" - que numa manhã de sala (ainda mais) vazia, disse que sempre teve dificuldades com os amigos e colegas da mesma geração; havia qualquer coisa, falhas de comunicação, linguagens diferentes, ressentimentos que ninguém saberia justificar, que impossibilitavam o entendimento. E só depois dos cinquenta as dificuldades se esbateram, e os amigos diziam-lhe, perplexos, que de repente o compreendiam. Já na altura o percebi, e ultimamente tenho-me lembrado muito disto.

I'm a foreigner, you know

"[Lieutenant] Nescaffier only gets one line of dialogue!"
"Well, I did cut something he told me, it made me too sad. I could stick it back in, if you like."
"What did he say?"
"I admire your bravery, Mr. Lieutenant."
"I'm not brave. I just wasn't in the mood to be a disappointment to everybody. I'm a foreigner, you know?"
"This city is full of us, isn't it? I'm one myself."
"Seeking something missing. Missing something left behind."
"Maybe with good luck, we'll find what eluded us in the places we once called home."
Nescaffier half nods, half shakes his head, dejected, tired.
"That's the best part of the whole thing. That's the reason for it to be written."
"I couldn't agree less."

"Well, anyway, don't cut it."

The French Dispatch, Wes Andersen

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Nunca será bastante o incêndio

Não via há três anos a pessoa que, nas amizades, finalmente me ensinou a lição que no fundo sempre soube (quando alguém da tua geração mostra simpatia gratuita por ti, foge). Quando me viu quis dar-me um abraço apertado e ficar com o meu número de telefone. Eu deixei, e no dia seguinte abandonei o país.

paltry & insignificant

"In the countryside I was mostly busy with the construction of a new barn. I managed to build a wonderful barn, 40 sq. metres, with an overhang and the slated roof. Unfortunately no pictures so far to send you.
We had a wonderful time there and I started feeling that I could probably live without the God forsaken and long-abandoned art of cinema. Living like this all my life, on the bank of the river, and writing an endlessly long book which my son would continue writing after my death, and then his son, and so on and on and on...). And living with our own work. We have a vegetable patch 1,500 sq. metres and a small garden.
Here I can’t bear it anymore: futile persuading everybody how important the art of cinema is. I really feel I’m getting closer and closer to the realisation of this idea. What keeps me from it is vanity and regret about my forgotten talent: both feelings paltry and insignificant."


Andrey Tarkovsky em carta para Sergei Parajanov, a 22.1.1976 (visto aqui)

Ler ajudava

"Of course, reading helped a lot - it excited, delighted and tormented me."

Notes From the Underground, Dostoevsky

sagrada e reunida

A felicidade é fácil
e pertence aos tolos,
que falam do infinito
mas não o reconhecem;
nossa é a tarefa
de enxertar a alegria
na matéria dos dias.

Dizem que é difícil escrever
sobre a felicidade,
eu digo que é difícil
contornar o êxtase rigoroso
que teima em permanecer comigo
e me pede a justa taxa
da minha vida,
dedicada ao pão sobre a mesa
ao livro sobre a mesa
ao corpo sobre o musgo
ao corpo no mar.

De dentro para dentro

Caminha para dentro dos cercos
No interior não te faltarão provisões.
Novos vizinhos te darão acolhimento
Mais fiéis do que os amigos
Dias e noites maldizendo-te em silêncio
A proximidade

Encosta-te às vedações para guardares
Com minúcia a dolorosa divisão da paisagem
O para ti e o para além
A solidão infinita de ocupares um lugar

Caminha para dentro
Onde gira a nora e o burro é cego
E os círculos perfeitos.
Não te há-de faltar
A distância.

Daniel Faria

Incêndios, naufrágios e livros

Uma noite sonhei que os meus sublinhados, notas apressadas, bocados náufragos de papel a marcar páginas, tinham desaparecido, e chorei porque os meus livros já não eram meus. Perdi tantas provas de vida, tanto conforto e reconhecimento que tinha acumulado para futuras noites de Inverno, nessa deserção da minha história à minha vida, mas os meus livros choraram comigo, e as suas lágrimas salvaram-me. Reconstruí as notas e os papéis com amor e paciência, ao longo de anos, sobrevivendo à catástrofe no trabalho do reencontro. Ficámos, eu e os meus livros, um pouco mais tristes, um pouco mais velhos, mas sobrevivemos; e eles nem me levaram a mal ter sido eu quem lhes calhou em sorte.

Incêndios, naufrágios e livros

 The Color Of Pomegranates, Sergei Parajanov

Incêndios, naufrágios e livros

CANTO NONO

Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.

Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.

Tonino Guerra, in "O Mel" assírio & alvim, 2003

Incêndios, naufrágios e livros


"After the Blitz in 1941, there was considerable water damage to the Museum’s library collection. The library had taken a direct hit and the fire that followed meant that many books were damaged by the water used to put it out. These books were spread out in Room 33 (now The Sir Joseph Hotung Gallery) to dry and every available bit of space was used." (aqui)

Nunca será bastante o incêndio

Queimará o monte, o filho, a lenha
A morte, as areias, a viagem
O deserto, a túnica, as estrelas

Nunca será bastante o incêndio

Do sacrifício de Isaac, Daniel Faria

Return to the moon

She said, "I think you're 
Getting too far from your 
Family's house to find it 
You should know if you're 
Running away and I touch you 
You freeze"

"Return To The Moon", El Vy

*

A meu favor tenho o teu olhar 
testemunhando por mim 
perante juízes terríveis: 
a morte, os amigos, os inimigos. 

E aqueles que me assaltam 
à noite na solidão do quarto 
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim 
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto. 

Protege-me com ele, com o teu olhar, 
dos demónios da noite e das aflições do dia, 
fala em voz alta, não deixes que adormeça, 
afasta de mim o pecado da infelicidade. 

"Completas", Manuel António Pina


Noites

Passo as noites a ouvir os concertos do "Jazz Night in America." Salto de livro em livro sem me concentrar em nenhum, enquanto a pilha aumenta ao lado do sofá. Vejo filmes uns atrás dos outros até muito tarde. Penso que tenho saudades de conversar com as minhas pessoas; penso que não sei se ainda tenho "minhas pessoas"; depois lembro-me de um par de nomes e sorrio. E lembro-me que as migalhas são para os patos.

Partir os ossos

Nada ofende tanto como sairmos da caixinha em que nos puseram. O fenómeno é antigo: pessoas que se encantam comigo porque me acham "pura", "frágil", "bonita." Quando lhes digo que sou só gente, com a minha misantropia, a minha recusa de consensos bonitinhos, a minha rabugice, encaram isso como se encara uma criança pequena que, quanto mais tenta fazer beicinho, mais adorável fica. O que se segue é expectável: quando são obrigados a admitir que não estou disposta a partir os ossos para caber bem na caixinha, ai esta cabra que nos andou a enganar. A uma pessoa má perdoa-se tudo; de uma pessoa que alguém decidiu etiquetar, unilateralmente, como "boa" ou, pior ainda, "bonita", qualquer atitude que não um baixar de olhos humilde e caladinho (caladinho é muito importante) é um crime que só se expia com ostracismo  ou apedrejamento. 

Relíquias

Não temos outras relíquias
que não a fome que não nos matou
e que continua a não nos matar.
Os lugares que amamos
não nos pertencem
e só como vagabundos
(por uma noite, no palheiro)
nos é permitida a entrada.
Casa são os interstícios
e a estrada.