terça-feira, 16 de março de 2021

Kitsch português / margem sul

A minha quarentena é passada num subúrbio onde as árvores são chatices indesejáveis, os prédios parecem construídos de propósito para minimizar a entrada de luz nas casas, há dezenas de máscaras descartáveis no chão nas paragens de autocarros, e a relva dos poucos jardins que existem está repleta de restos do Macdonald's. 
Sonho dia e noite com o mar. A rede de estradas secundárias e atalhos entre a Lagoa de Albufeira e o Cabo Espichel está repleta de descampados que se tornam bonitos com o sol glorioso de um fim de tarde de Verão e com a promessa de mar, e de casas tão feias que se tornam tristes. Há uma que tem um grande quintal numa colina, totalmente semeado de sanitas e bidés velhos, às dezenas. Lembro-me, por exemplo, das fotografias de casas portuguesas nos subúrbios e na costa, da saudosa Luísa Cortesão,  e penso que amamos o feio (e possivelmente ofendemo-nos com quem o reconhece por esse nome), porque não há, nessa extensa mistura de subúrbios e descampados com lixo que caracteriza parte significativa deste país, muito mais que se possa amar. Há o nosso mar imenso e o seu céu e sol, certo. Mas o lixo e a feiura triste têm uma maneira perniciosa de se espalhar, e no fim do dia deixaram a Sophia fora do cânone, e há dias em que, aqui, não existe mais que isto.
Há sempre uma altura, no cansaço do Inverno, em que sou tomada por uma espécie de loucura que me faz duvidar da existência continuada do sol e da possibilidade do Verão. Há dois anos a lucidez já teria voltado, com os primeiros dias de sol, as primeiras árvores floridas numa das minhas serras, e a primeira vez em que antecipo, ainda com as mantas todas na cama, o primeiro mergulho naquela praia inicial, mais a norte. Este ano a ilusão permanece para lá do seu tempo, e preciso de um esforço consciente para que não se misture com o cansaço deste dia 440 de 2020. Tenho medo: quanto tempo até os subúrbios me engolirem de vez, e eu perder as minhas rotas? Até perder a praia atlântica que é para mim a primeira; a outra, num enseada escondida, onde o pôr do sol é mais bonito; a da minha infância, com relva e eucaliptos para as sestas; certas piscinas de rocha protegidas da rebentação; o lugar exacto no areal para conversas até às tantas com um termo de chá, sob uma chuva de estrelas cadentes.
Todas as noites atravesso em sonhos a paisagem desolada, em busca desse mar que é uma necessidade e uma obsessão. Por agora ainda lá chego, a essas praias secretas que nomeio em silêncio, para que o lixo não as invada, e ainda sou capaz de celebrar os descampados, mesmo com bidés, pelos caminhos que me conduzem até ao mar, pela luz nas ervas numa tarde de Verão. Desde que a sede não nos abandone e os caminhos não nos expulsem, escrevi há uns anos. Rezo aos meus deuses (Sophia, Ariadne de Naxos, Severa) para que assim continue.

1 comentário:

  1. Que texto, Inês, fico derreado. Como é possível escrever com tanta garra e não escrever mais ?

    O lixo e a feiura somos nós, é o fado luso, está nas veias deste povo. E por má sorte não deixa de nos surpreender com novas demonstrações. Mesmo assim fico triste em saber que nos seus arredores não é fácil escapar-lhes.

    Nao querendo citar Sophia, deixo-lhe quatro versos de Tolentino (de quem dispenso a fé):


    pois que tempo abrigará
    os anjos
    e que dia erguerá todo o sol
    que há nas dunas

    Muito sol nas dunas que a rodeiam, Inês.

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