domingo, 7 de março de 2021

Presciência & intenção

Podia passar dias e dias a analisar as intenções de Jean-Luc Godard em La Chinoise, a tentar perceber quanto daquela sátira foi intencional, e quanto é fruto da minha leitura contemporânea e anacrónica, informada pelo conhecimento que hoje temos das atrocidades dos regimes comunistas russo e chinês, e da esterilidade de movimentos como o Maio de 68.
Mas interessa-me mais a presciência de algumas cenas, como aquela em que a personagem de Léaud elimina escritores e dramaturgos um a um, sem piedade, até não sobrar nada a não ser Brecht. Ele que se cuide, porque as redes sociais que papagueiam chavões de extrema-esquerda cujas implicações estão longe de perceber (e que não têm interesse nenhum em viver na pele), ainda só não apagaram Brecht porque não sabem que ele existe (é dar-lhes tempo, não tenho dúvidas que lá chegarão e que as suas razões para o eliminar serão magníficas). Perante cenas como esta, ou passagens como aquela, n'O Homem Sem Qualidades, em que Ulrich finalmente desiste de tentar chegar a algum lado depois de ouvir falar do "génio" de um cavalo de corrida, pergunto-me se isso a que chamamos presciência não será simplesmente o resultado de fazer aquilo de que hoje poucos parecem capazes: perseguir uma ideologia, um movimento, uma ideia até às suas últimas consequências, e falar com honestidade acerca do lugar onde isso nos  leva. 
Enquanto Musil o faz de forma irónica, crítica e desencantada, Godard está engajado. E eu acho que as consequências últimas daquilo que ele defende são inaceitáveis, mas não tenho a certeza que a postura acrítica e auto-congratulatória que o filme (voluntariamente ou não) mostra e profetiza, nas suas personagens, seja mais inócua. E acho que é isso que me perturba tanto neste filme: dar por mim a quase respeitar mais um realizador que defende o que tenho como inaceitável, porque o faz em consciência, que toda essa multidão passada e presente de "pessoas que aprenderam a falar com ovelhas", que defendem os mesmos princípios que ele, mas sem um pingo de auto-consciência, nem a coragem ou capacidade de levar um raciocínio até ao fim. O que é um raciocínio perigoso da minha parte, se o levar até ao fim. Eu sei, acreditem.



 

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