terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Rezar

São Calvino, São Cortázar, Santa Woolf, ajudem-me a amar os meus interstícios. São Borges, Santa Agustina, ajudem-me a encontrar-lhes a sua justa voz.

Lisboa à noite



Tinha saudades destas noites em que vagueio pela cidade, sozinha e atenta, a pensar com os meus botões, com o meu casaco mais quente e máquina fotográfica nas mãos.

domingo, 6 de dezembro de 2020

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Museu Geológico de Lisboa




O Museu Geológico, em Lisboa, não está só velho, está claramente abandonado, e é pena. Por outro lado isso transforma espaços como este numa espécie de máquinas do tempo, em que o próprio museu, mesmo quando não é arquitectonicamente relevante, acaba por ter uma história para contar. Tendo em conta que o espólio museológico português não é impressionante, seja em que área for, poderia ser interessante assumir este  aspecto de "máquinas do tempo" dos nossos pequenos museus, e criar histórias e roteiros à volta disso. Talvez o Museu Geológico não seja impressionante, mas imagino bem um roteiro que una pequenos museus lisboetas, Museu Geológico - Museu da Sociedade de Geografia de Lisboa - Museu Arqueológico do Carmo, por exemplo. Dava pelo menos um belo passeio.
E eu gosto de espaços assim, mesmo quando têm mais pó que visitantes. Gosto da sensação de ter escapado para um interstício entre tempos e entre pessoas; gosto de de trazer à vida com o meu interesse um espaço adormecido; gosto de passear sozinha e com vagar, sem tropeçar em turistas em modo automático; gosto do ar meio atrapalhado, meio cúmplice, entre os poucos visitantes; acho que até gosto do ar vagamente espantado dos funcionários, quando alguém aparece. 
E embora tenha pena de que isso só aconteça por esquecimento e não por haver um plano, uma ideia, gosto que estes museus escapem à burocratização e funcionalismo que pensa que ajudar espaços antigos a falar à contemporaneidade é despi-los de qualquer traço de personalidade, e substituir tudo por uma arquitectura funcional e fria, e mobiliário que parece saído de um escritório de repartição pública numa cave em 1984. Mas também acho que, com a minha pancada pelas coisas antigas, tenho de ter sentido crítico e perguntar se às vezes não corro o risco de romantizar o antigo. A antiguidade não é critério suficiente para elevar o que quer que seja ao estatuto de "clássico", e se a novidade por si só não é um valor, a antiguidade também não. E no caso do Museu Geológico é claro que há muito trabalho por fazer para levar o espaço a encontrar os seus visitantes. O Museu da Sociedade de Geografia (que já mostrei aqui, aqui e aqui) lançou-se a esse desafio, e conseguiu superá-lo - com algo tão simples como fazer todas as visitas com guia.
Ainda assim, onde fica a linha entre o respeito pelo testemunho e o imobilismo? E entre uma voz que faça sentido para o momento presente e a descaracterização? A minha resposta tende a ser intuitiva ("eu sei onde fica a linha quando a vejo ultrapassada"), e isso não me satisfaz. Acho que tenho de ir ler: há já bastante tempo que tenho na minha lista o ensaio sobre os clássicos do Italo Calvino e muita coisa do Roger Scruton; para equilibrar as coisas, talvez devesse procurar também uns bons iconoclastas. Até lá passeio pelos museus vazios e aceito a minha opinião instintiva: enquanto estes lugares tiverem um testemunho para dar não precisam de ser reinventados, precisam de ser redescobertos. E de alguém com uma ideia, que os ajude a redescobrir a sua voz. (E que saudades de poder realmente passear em museus. Vai ser um Inverno tão longo.)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Óbvio

Os clássicos, ou mais precisamente as reacções que suscitam (indiferença, desdém ou entusiasmo), são um óptimo instrumento para se perceber com quem se está a falar. A indiferença é, naturalmente, a reacção da maioria, e sobre isso não há muito a dizer aqui. O desdém é, naturalmente, a reacção dos cultos e inteligentes. "Os Irmãos Karamazov, óbvio", "o Coltrane, óbvio", e passam para coisas obscuras como convém; para os cultos e inteligentes o reconhecimento universal é um sinal de mau gosto por parte das obras (são tão óbvias que talvez nem valha a pena lê-las?... Mas isto sou eu e a minha má vontade, não liguem).
E depois há o entusiasmo, o brilho nos olhos quando alguém refere um nome que lhes é querido, a reacção intempestiva quando não se gostou de alguma coisa. São as pessoas que perseguem patos nos jardins, e há sempre nelas algo de infantil, e uma certa tendência para não se calarem quando tomam o gosto a alguma coisa. São os cronópios, e é com estes que eu me quero entender. Está no Cortázar.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Vondelpark | Amesterdão

Vondelstraat | Amsterdam
Vondelstraat | Amsterdam
Vondelstraat | Amsterdam
Vondelstraat | Amsterdam
Vondelstraat | Amsterdam
Amesterdão | Setembro 2015



A meio de Vondelstraat existe um pequeno largo; apesar de ser um recanto lindíssimo, a rua está vazia, sem turistas; os edifícios escuros de ar antigo e caro dão-lhe um ambiente sereno, elegante mas sóbrio; no seu centro está uma igreja onde, mesmo através das portas fechadas (é hoje um edifício privado, não aberto para visitas) se ouve um ensaio de ópera; num dos lados está uma das entradas para Vondelpark, o maior parque verde de Amesterdão, cheio de árvores enormes e recantos bonitos; há marcas de giz no chão, indícios de um lugar onde, surpreendentemente, as crianças ainda brincam na rua; numa varanda envidraçada, num primeiro andar de esquina, é visível uma biblioteca repleta e um pouco caótica, onde gostaria de me sentar, de janela aberta, com um livro, enquanto ouço a música que vem da igreja e observo as grandes árvores do parque. Foi no primeiro dia da minha primeira visita a Amesterdão, mas bastou para saber que tinha encontrado um dos meus recantos favoritos da cidade. Enquanto rodeávamos o largo devagar, ouvindo a música e adiando um pouco mais o momento de prosseguir, trocávamos olhares e sorríamos, como se tivéssemos, por pura sorte, encontrado aberto o portão para um jardim secreto que  espreitávamos há muito tempo.



Vondelpark | Amsterdam
Vondelpark | Amsterdam
Vondelpark | Amsterdam
Vondelpark
Amesterdão | Setembro 2015

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Leiden

Leiden é das minhas cidades favoritas. Apesar da antiguidade e fama que deve à sua universidade, parece-me sempre pequena e calma. No meio das visitas que faço a Amesterdão para visitar família, tem sido um lugar para passear com tempo, sem obrigação de bater pontos de interesse obrigatório entre multidões. Começamos sempre na mesma praceta sossegada e bonita, onde está um café lindo com um nome impronunciável ('t Suppiershuysinghe) em que sabe bem ficar sentado na esplanada, ou num canto junto à janela, a ler e a beber chá. 





Na altura da minha segunda visita escrevi: "Esta tarde foi muito boa para mim. Voltámos, só eu e o B., a Leiden, numa tarde fresca e solarenga de Outono; passeámos pelas ruas, descobrimos a pequena muralha circular rodeada de árvores e de casas com terraços apetecíveis, e que tinha no seu interior um conjunto de três ou quatro plátanos gigantescos, que enchiam o chão de folhas castanhas e que davam ao lugar um ar de claustro arejado e sereno, onde apetecia empoleirar-me entre dois torreões da muralha, a ler. E voltámos ao nosso café na praceta atrás do Museu de Arqueologia, onde eu queria tanto regressar e que me fez sentir que mesmo que a tarde não tivesse tido mais nada, já teria valido a pena por isto. Sentámo-nos no interior, num canto ao lado de uma janela, e lemos, enquanto bebíamos o nosso café e chá (de jasmim, mesmo bom), e eu achava as minhas fotografias desta viagem, nos meus amados calmos vazios: a luz que entrava pela janela com uma suavidade imensa, o livro novo ao meu lado, a companhia do B., a mochila como um bocadinho de ninho que podemos levar connosco."






Não tenho muitas fotografias de Leiden e, estupidamente, nenhuma do interior da muralha circular, que era linda. Mas foi ao fim da tarde, já me doíam as pernas, e o lugar era tão bonito que nos sentámos apenas a conversar e a ver a vista. Ficam as fotografias da praceta do café, de um par de ruas e pouco mais, mas já ajuda a matar as saudades.






E fica ainda esta recordação preciosa: que na altura me sentia um pouco à deriva, e que houve uma sensação de reencontro pacificado comigo mesma e com as coisas. Tudo por causa de um café calmo numa praceta bonita de uma cidade europeia; e da boa companhia, que percebe coisas como ficarmos os dois sentados a ler; e do Outono, que ali nos achou, e que torna tudo melhor. Queixei-me antes de que fiquei com fotografias por tirar em Leiden, e é verdade (essa crise já me tem uns anos). Mas também é verdade que há imagens que têm, sozinhas, mais poder evocativo e consolador que muitas outras juntas, e eu tenho essa imagem para Leiden. E isso já é tanto.







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(Andei a matar saudades de outras paragens através das minhas fotografias e, inspirada pl'O Livro de Areia (que tem sido um consolo nestes dias), decidi partilhar algumas por aqui.)

terça-feira, 4 de agosto de 2020

No bosque

Pergulho | Julho 2020



Pedi ao bosque que me concedesse entrada e abrigo. Deu-me tanto mais - permitiu-me que nele permanecesse sem sacrilégio, sem perturbar a sua vida invisível. Ouvi a copa dos pinheiros dançar ao vento, testemunhei o crescimento dos líquenes e das árvores, vi-me rodeada de pássaros que a minha presença não perturbou. Junto ao sobreiro antigo lembrei-me que sonhara com uma coruja que viera até mim e me prometera consolo. Encostei a testa ao tronco e agradeci.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Desassossego

Andei meses com a sensação de que a cabeça se apagou e ficaram só as luzes de presença. Agora abro as janelas e bato o pó dos tapetes no quintal. Voltei a ter vontade de ler, e com a leitura voltou a vontade de escrever.
Há dois anos arranjei um caderno preto de folhas lisas, muito simples e fino (para ser leve e portátil, que a escoliose não perdoa), e comecei a apontar coisas: fragmentos de ideias, passagens de livros que me mantiveram acordada de noite, angústias recorrentes, pistas de respostas, ideias para projectos fotográficos - caminhos possíveis, uma realização da minha vocação de respigadora, um jogo de espelhos e reenvios que revisito frequentemente e que serve de base para tudo o que possa vir depois; e apesar da sensação frustrante de que passo mais tempo só com as luzes de emergência acesas que a desbravar caminho, os "cadernos pretos" crescem.
Tirando umas ideias soltas para um projecto fotográfico que ainda está por realizar (mas isso é todo um outro crux), a primeira coisa que apontei nos cadernos foram passagens do "Livro do Chá", de Okakura Kakuzō. Para um livro tão pequeno, está tão cheio de ideias e pistas que quase o podia ter transcrito por inteiro. Há considerações acerca da arte oriental e ocidental, há muito acerca de chá, claro, mas acima de tudo é um tratado impressionante acerca do efémero e do frágil, do imperfeito. Algumas das frases que transcrevi ressoaram tanto que acabaram por se transformar numa espécie de frontão para os cadernos, uma síntese do Fio que une tudo o que cabe dentro deles. Ao falar da Sala-de-Chá Okakura descreve-a como "uma estrutura efémera, construída para abrigar um impulso poético", e eu continuei: 

"Uma derivação possível disto (e talvez uma boa descrição do que procuro com as minhas fotografias dos "Calmos Vazios") é: 'Os dias: estruturas efémeras, construídas para abrigar o impulso poético'. É o Imperfeito que abre nos dias as suas possibilidades poéticas; devia ser ele o deus dos dias. Como nos passeios de máquina fotográfica na mão, no início do entusiasmo com a fotografia. Ando há demasiado tempo a fugir do imperfeito. Em dias como este a recuperação é mais fácil, o regresso àquele olhar que procura o que não se vê, para responder com isso à lacuna que reconhece em si mesma e nas coisas. E é daí, dessa mesma lacuna, que nasce o impulso criador; Okakura tem toda a razão quando diz que o Ocidente se expandiu "à custa do desassossego", e nem eu queria outro ponto de partida. O que quero é precisamente fixar esse ponto de partida, gravar o Desassossego na pele."

Desde que escrevi isto aprendi que tudo o que se ritualiza e consagra
corre o risco de petrificar - até o Desassossego - e que isso ocorre quando, por termos tão pouco, pedimos às nossas
narrativas e processos de construção de identidade e sentido mais do que
elas nos podem dar.
Há dias que são só dias e em que não há sentido possível. Não é a melhor altura para
romantismos e Imperfeitos com maiúscula; creio que o tom de censura de Okakura quando fala do "Desassossego"
ocidental, apesar de ser um conceito paralelo à "adoração do Imperfeito"
que expõe, se deve à nossa tendência para tentar tornar a lacuna
grandiloquente, geralmente em processos de fuga para a frente, que só nos tornam mais miseráveis.
Sou ocidental da cabeça aos pés e continuo a acreditar (desde as aulas do Nuno Ferro, há muitos anos atrás) que o Desassossego é a nossa maior riqueza. Mas parece-me sábio reconhecer que há alturas em não há muito
mais a fazer que esperar no escuro enquanto o vazio percorre o seu curso, e esperar que isso não dure para sempre. E só quando um dia se acorda e se abre a
janela, com aquela sensação de ter apanhado pancada, que se tem quando se passou muitas horas na cama sem conseguir dormir, é que se está em condições de transformar a lacuna em criação. Do lado de cá é bem mais fácil acreditar no Imperfeito com maiúscula. Ainda me dói demasiado o corpo para grandes romantismos, mas tudo bem.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

"And domestic architecture"

"It might even be said that Yeats managed to establish his household inside a gyre, for (as he shows in 'Blood and the Moon') the tower where he lived, Thoor Ballylee, had a winding staircase easy to see as a reification of the spiral motion that governs all things. Yeats wished to facilitate the transit of images to him, by all means available from philosophy, poetry, and domestic architecture."

"I part company from Finneran in two ways. First, he is more respectful of Yeats's punctuation than I. He supposes (as did Curtis Bradford) that Yeats's punctuation was rhetorical rather than grammatical, an imaginative attempt to notate breath-pauses, stresses and so forth; and that the bizarre punctuation in some of Yeats's later poems is due to the influence of experimental modernists such as T. S. Elliot and Laura Riding. I suppose that Yeats was too ignorant of punctuation to make his deviations from standard practice significant. Although Yeats surely wished to make his canon a text worthy of reverence, he conceived poetry as an experience of the ear, not of the eye. He could not spell even simple English words; he went to his grave using such forms as intreage and proffesrship."

Senhores e senhoras: Daniel Albright, responsável pela edição crítica de Yeats que estou a ler, da Everyman's Library. Era só isto. Boa noite.

"It makes life impossible"

"How red those petals are! They are like stains of blood on the cloth. That does not matter. You must not find symbols in everything you see. It makes life impossible." diz Herodes na peça Salomé, de Oscar Wilde, e acho que isto explica uma ou duas coisas acerca da minha vida.

sábado, 28 de março de 2020

Diários de uma (não) quarentena

(I)


* Como há menos gente nas paragens, o autocarro que me levaria ao terminal passa mais cedo e não o consigo apanhar; como a quantidade de transportes foi bastante reduzida, não passará mais nenhum em tempo útil. Sigo a pé, e penso na ironia de haver menos gente em trânsito e eu chegar mais tarde ao trabalho. Canta um galo. Ouço as primeiras andorinhas desta Primavera. Está um céu azul sem mácula. Um varredor de rua assobia e invejo-lhe a boa disposição, mas tenho vontade de passar a fazer este trajecto a pé.

* Se alguém tosse no barco, já não é olhado com horror e desconfiança: todos seguimos, na medida do possível, as precauções aconselhadas, mas todos sabemos o que nos espera.

* O silêncio no barco, de manhã, chega a ser sepulcral. Não somos só menos. É como se houvesse alguma coisa vagamente indecente numa conversa em tom normal.

* Desisti de ler livros novos por agora, não tenho espaço mental para isso. Passeio "O Livro de Areia" na mala, como se fosse não só uma leitura, mas um talismã.

* Apesar de tudo há sol no rio, quebrado em mil estrelas.

* O metro convida-nos, pelos altifalantes, a cumprir um metro de distância de segurança,  dentro das carruagens. Conto as pessoas. É fisicamente impossível.


(II) 

* É difícil ser consistente no esforço de não desviar o corpo desta ferida, quando só me apetece dissociar o mais possível. Mas algum escapismo não só é legítimo como necessário para sair disto com vida. Preciso de encontrar o equilíbrio entre defender-me e pegar o boi pelos cornos. Primeira lição de estar presente: voltar a fazer as pazes com a solidão. O problema é que neste momento em que tantos se dedicam ao seu umbigo, enquanto têm a boca cheia de "solidariedade", a solidão é tão radical. Mas reaprender a viver no presente - e a não ser consumida por ele - liberta-te para que vivas o outro presente, aquele que importa (os "Calmos Vazios", aquela lição que sabias tão bem aos dezanove e que agora desaprendeste. E está mesmo na altura de pegares nos Estóicos).
Tempo também de recuperar as lições da última grande crise: "o mal que os outros escolhem fazer não é desculpa para seres má também", "não aceitar migalhas", etc.

* Tarefa higiénica da manhã: reduzir drasticamente os meus contactos nas redes sociais. 

* No trabalho lancho mais tarde que o resto das pessoas, para poder estar sozinha na copa e olhar os telhados, naquele ponto exacto em que telhas e céu se tocam. A luz já começa a reencontrar a sua força, e lembro-me de uma das minhas paisagens favoritas: os telhados de Lisboa numa manhã de Junho, vistos de uma certa janela nos claustros da Sé de Lisboa. 

* Trabalho de casa: aprender a trocar a compulsão para a partilha que ninguém me pediu pela auto-expressão, a partilha de mim para mim.

* O meu irmão está doente, pelo que tive de ser eu a levar compras ao pai e à mãe. Conversámos à porta, com dois metros de distância entre nós, mas no caminho de volta a casa é difícil não ficar presa nisto: eu passo por três transportes diferentes para ir trabalhar, e mesmo com o edifício a meio gás, estimo que seremos pelo menos uns 800 trabalhadores - e de repente sinto-me culpada tão culpada por isto. 


(III)

* Comecei as "Meditações" do Marco Aurélio. Ligam-se estranhamente bem com a vinheta "How To Be Perfectly Unhappy", do Matthew Inman, que descobri ontem à noite: "I'm not happy, and I don't pretend to be. Instead, I'm busy. I'm interested. I'm fascinated." Obrigada, acho que precisava disto. 

* Finalmente saio do buraco o tempo suficiente para que a raiva se transforme em acção. De associações de defesa do trabalhador ao Correio da Manhã, eu falo com quem me quiser ouvir. Não acredito que alguém queira, mas prefiro morrer a espernear que implodir. Tento equilibrar isso com os gestos possíveis de solidariedade concreta. Que eu não lute apenas porque agora me toca a mim.


(IV)

* Na Avenida da Liberdade as árvores estão mais nítidas contra o céu, e ouvem-se tanto os pássaros. É Sexta-Feira de uma semana que durou cem dias; tenho o coração cheio de raiva e cansaço, mas também deste silêncio sem precedentes, e sento-me num banco a olhar as árvores, o céu muito azul, a rua. Passa um carro da polícia e pára à minha frente. Sou a única pessoa até onde a vista alcança. Finjo que não os vejo. Observam-me, e não sei o que vêem, mas vão-se embora sem me dizer nada. 

* Antes de entrar para o barco fico um pouco na plataforma flutuante, de costas para quem entra, de frente para o rio e para Lisboa. Numa altura em tantos lutam com peso terrível do isolamento forçado, respiro um pouco melhor neste momento em que finalmente posso virar costas às pessoas e deixar que só o rio e a cidade me vejam.

sábado, 21 de março de 2020

Baby, I'm all that

E se a publicação anterior faz de mim uma pessoa intratável, bom, filhinhos, é preciso conhecer-me muito mal para não saber que essa sempre foi a minha natureza. Se alguma violência fiz a mim mesma nos últimos anos, foi passar a acreditar que tornar-me agradável era a única maneira de lidar com as cartas que a vida me tem dado.
Rabugenta, intratável, intransigente, cansativa, bicho-do-mato, misantropa, demasiado séria, pouco agradável e pouco dada a agradar, uma ofensa ao bom gosto, demasiado estranha para a normalidade, demasiado normal para os estranhos de profissão, imprópria para consumo, imprópria para viver em sociedade, baby, I'm all that. E lembrar-me disto tira-me um peso de cima, porque este estado meio selvagem me devolve à única coisa que, no fundo, preciso para viver: a minha liberdade.
Já era tempo de me relembrar disto, portanto, enfim, talvez seja bom que toda esta situação me tenha lembrado o quanto pertenço ao grupo dos cansativos, invisíveis e dispensáveis. Agora é cortar tudo o que constitui para mim amarra e não instrumento de liberdade. O resto são trocos.

"Estamos todos unidos"

Há muitos anos atrás trabalhei (enquanto profissional) com voluntários. Foram cinco dias por semana, durante três anos. E se há coisa que aprendi foi que a maioria dos voluntários não faz o bem para fazer o bem. Faz o bem para se sentir bem consigo mesmo por fazer o bem. Isto quer dizer que as pessoas são (só) egoístas, ou mesquinhas, ou que o grande capital de boa-vontade dos voluntários é uma farsa? Nem por sombras. O seu trabalho é essencial, tem valor, e acredito realmente que é feito de boa vontade. Acontece que a maioria das pessoas tem capacidade para o bem, mas só o bem localizado: o bem que lhes diz respeito pessoalmente, que conseguem compreender porque se insere nas regras e códigos do seu círculo social imediato, e cujo resultado seja rápido e visível, para haver gratificação. (Isso quer dizer que as pessoas são boas? Más? Quer dizer que são pessoas.)
Mas é por isso que neste momento de pandemia olho com distanciamento e pouca fé para as proclamações do heroísmo e solidariedade do povo português que circulam por essas redes sociais, cheias de pessoas que cantam o seu próprio heroísmo por terem profissões não essenciais e/ou patrões decentes que lhes permitiram ir para casa, ou para os quais revoltarem-se e perderem um mês de ordenado não significa não comer, não ter como pagar a renda ou prestação, ou ter um ou dois anos de desemprego pela frente. Não me interpretem mal, estar fechado em casa é de dar em doido, claro que é. E quem está em casa também tem razão para temer pela sua saúde, e pelo amanhã que ninguém sabe como será. Mas acontece que as manifestações de solidariedade que circulam por essas redes sociais começam e acabam exclusivamente em quem está em casa. Ignora-se olimpicamente quem não o pode fazer, porque isso não encaixa na narrativa e fica mal no meio das fotografias de livros que não são para ler e pão caseiro. E quem conhece pessoalmente pessoas nessa situação à primeira tem muita pena, à segunda tem dificuldade em esconder o embaraço por estes não se calarem, e à terceira irrita-se porque se ainda não conseguiram resolver a situação, foi obviamente porque não seguiram os conselhos fáceis e eficazes de quem pôde ir para casa sem medo de retaliação, ou porque "bem, não querias que isto tudo parasse, pois não?" Por isso, e embora saiba que é um gesto inútil da minha parte, aqui fica:

aos médicos, enfermeiros, farmacêuticos, auxiliares de saúde, trabalhadores em lares e em organizações de saúde e solidariedade social. Mas também a quem trabalha nos supermercados, mercearias, talhos, padarias e afins; nas cadeias de distribuição; nos postos de abastecimento de combustível; nos transportes; nas limpezas; nos restaurantes que continuam abertos em regime de take-away; condutores de serviços de entregas ao domicílio; trabalhadores dos CTT, pessoal da recolha de lixo, etc. Aos trabalhadores de call-centers, trabalhadores por empresas de trabalho temporários, e todos os outros que estão em serviços não essenciais, com patrões a quem basta mentir acerca da (im)possibilidade de teletrabalho, para serem obrigados a permanecer nos seus postos, porque esses patrões sabem que podem contar com a bem conhecida inépcia da ACT para que essa mentira nunca seja fiscalizada, e muito menos em tempo útil. Que trabalham em lugares onde os trabalhadores internos foram enviados para casa, e os externos foram obrigados a permanecer nos seus postos de trabalho (e relembro que o Estado, através das empresas de trabalho temporário, é um dos empregadores que está a fazer isto, bem como praticamente todos os callcenters). Que quase sempre são os mesmos cujos patrões são as grandes empresas, as únicas para as quais ter os empregados em casa, mesmo quando não é possível o teletrabalho, não seria uma catástrofe, e que no entanto são as que mais se recusam a perder um cêntimo que seja para proteger os seus trabalhadores - gado, mercadoria de baixo valor facilmente substituível, geralmente aqueles que pior recebem, que mais transportes têm de apanhar para ir trabalhar, que não têm médico de família, que não têm o luxo de um seguro de saúde, que têm os piores horários e que estão demasiado exaustos e vivem em condições demasiado precárias para não perderem demasiado se arriscarem a revolta e esta lhes correr mal. A todos os patrões de pequenas empresas, para as quais fechar por quinze dias pode ser o suficiente para a falência, e que mesmo assim tiveram a coragem de fechar. A todos os patrões de pequenas empresas, para as quais fechar por quinze dias pode ser o suficiente para a falência, e que por isso  - sem  as manhas e canalhice acima referidas - adiaram o mais que puderam o fecho, e agora estão a ser julgados em praça pública como vilões, a quem a tão falada solidariedade não se aplica. A todos os pais e mães que estão em casa em teletrabalho sozinhos com os filhos (seja porque são pais/mães solteiros, seja porque se um deles estiver em teletrabalho, o outro está proibido de ficar em casa a tomar conta dos filhos), que não estão a conseguir trabalhar, e que estão a sofrer represálias porque "foram para casa para trabalhar e afinal só preguiçam". A todos os que estão em casa sem teletrabalho, sem ordenado, em layoff, sem saberem se quando isto acabar ainda têm emprego ou não, ou que já foram despedidos. A todos aqueles que são tão invisíveis que nem os sei nomear: 
 
não sei se vamos ficar bem, esse tipo de certezas não são para nós. Não estamos incluídos no "estamos todos juntos", porque estragamos a narrativa e as pessoas aborrecem-se um bocado, e vá lá, se nós não trabalhamos como é que a economia se aguenta para que os outros não percam os seus empregos, e afinal a culpa até é nossa porque não lutamos, lutar é tão fácil, e historicamente é sabido que nos corre bem, e se estamos exaustos e nos acobardamos, bom, não tivessemos uma cabeça tão fraquinha. Mas também somos gente. Eu sei que neste momento é difícil acreditar nisso. Mas somos.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Transumância

Também me acontecia em sonhos chegar a  lugares   que depois incessantemente buscava" é um programa de vida. Tolo, possivelmente inconsequente, e totalmente assumido.

Raízes

Volto sempre à terra e às minhas raízes. Há uns anos olhei para esta tendência com alguma desconfiança ("estás-te a repetir, tens obrigacação de procurar algo novo" etc). Hoje percebo que isto é um privilégio, e que há coisas que não se esgotam. Que há sedes que não se esgotam, e que é nelas que se encontra a possibilidade de renovação e de surpresa. Ainda bem.