sábado, 21 de março de 2020

"Estamos todos unidos"

Há muitos anos atrás trabalhei (enquanto profissional) com voluntários. Foram cinco dias por semana, durante três anos. E se há coisa que aprendi foi que a maioria dos voluntários não faz o bem para fazer o bem. Faz o bem para se sentir bem consigo mesmo por fazer o bem. Isto quer dizer que as pessoas são (só) egoístas, ou mesquinhas, ou que o grande capital de boa-vontade dos voluntários é uma farsa? Nem por sombras. O seu trabalho é essencial, tem valor, e acredito realmente que é feito de boa vontade. Acontece que a maioria das pessoas tem capacidade para o bem, mas só o bem localizado: o bem que lhes diz respeito pessoalmente, que conseguem compreender porque se insere nas regras e códigos do seu círculo social imediato, e cujo resultado seja rápido e visível, para haver gratificação. (Isso quer dizer que as pessoas são boas? Más? Quer dizer que são pessoas.)
Mas é por isso que neste momento de pandemia olho com distanciamento e pouca fé para as proclamações do heroísmo e solidariedade do povo português que circulam por essas redes sociais, cheias de pessoas que cantam o seu próprio heroísmo por terem profissões não essenciais e/ou patrões decentes que lhes permitiram ir para casa, ou para os quais revoltarem-se e perderem um mês de ordenado não significa não comer, não ter como pagar a renda ou prestação, ou ter um ou dois anos de desemprego pela frente. Não me interpretem mal, estar fechado em casa é de dar em doido, claro que é. E quem está em casa também tem razão para temer pela sua saúde, e pelo amanhã que ninguém sabe como será. Mas acontece que as manifestações de solidariedade que circulam por essas redes sociais começam e acabam exclusivamente em quem está em casa. Ignora-se olimpicamente quem não o pode fazer, porque isso não encaixa na narrativa e fica mal no meio das fotografias de livros que não são para ler e pão caseiro. E quem conhece pessoalmente pessoas nessa situação à primeira tem muita pena, à segunda tem dificuldade em esconder o embaraço por estes não se calarem, e à terceira irrita-se porque se ainda não conseguiram resolver a situação, foi obviamente porque não seguiram os conselhos fáceis e eficazes de quem pôde ir para casa sem medo de retaliação, ou porque "bem, não querias que isto tudo parasse, pois não?" Por isso, e embora saiba que é um gesto inútil da minha parte, aqui fica:

aos médicos, enfermeiros, farmacêuticos, auxiliares de saúde, trabalhadores em lares e em organizações de saúde e solidariedade social. Mas também a quem trabalha nos supermercados, mercearias, talhos, padarias e afins; nas cadeias de distribuição; nos postos de abastecimento de combustível; nos transportes; nas limpezas; nos restaurantes que continuam abertos em regime de take-away; condutores de serviços de entregas ao domicílio; trabalhadores dos CTT, pessoal da recolha de lixo, etc. Aos trabalhadores de call-centers, trabalhadores por empresas de trabalho temporários, e todos os outros que estão em serviços não essenciais, com patrões a quem basta mentir acerca da (im)possibilidade de teletrabalho, para serem obrigados a permanecer nos seus postos, porque esses patrões sabem que podem contar com a bem conhecida inépcia da ACT para que essa mentira nunca seja fiscalizada, e muito menos em tempo útil. Que trabalham em lugares onde os trabalhadores internos foram enviados para casa, e os externos foram obrigados a permanecer nos seus postos de trabalho (e relembro que o Estado, através das empresas de trabalho temporário, é um dos empregadores que está a fazer isto, bem como praticamente todos os callcenters). Que quase sempre são os mesmos cujos patrões são as grandes empresas, as únicas para as quais ter os empregados em casa, mesmo quando não é possível o teletrabalho, não seria uma catástrofe, e que no entanto são as que mais se recusam a perder um cêntimo que seja para proteger os seus trabalhadores - gado, mercadoria de baixo valor facilmente substituível, geralmente aqueles que pior recebem, que mais transportes têm de apanhar para ir trabalhar, que não têm médico de família, que não têm o luxo de um seguro de saúde, que têm os piores horários e que estão demasiado exaustos e vivem em condições demasiado precárias para não perderem demasiado se arriscarem a revolta e esta lhes correr mal. A todos os patrões de pequenas empresas, para as quais fechar por quinze dias pode ser o suficiente para a falência, e que mesmo assim tiveram a coragem de fechar. A todos os patrões de pequenas empresas, para as quais fechar por quinze dias pode ser o suficiente para a falência, e que por isso  - sem  as manhas e canalhice acima referidas - adiaram o mais que puderam o fecho, e agora estão a ser julgados em praça pública como vilões, a quem a tão falada solidariedade não se aplica. A todos os pais e mães que estão em casa em teletrabalho sozinhos com os filhos (seja porque são pais/mães solteiros, seja porque se um deles estiver em teletrabalho, o outro está proibido de ficar em casa a tomar conta dos filhos), que não estão a conseguir trabalhar, e que estão a sofrer represálias porque "foram para casa para trabalhar e afinal só preguiçam". A todos os que estão em casa sem teletrabalho, sem ordenado, em layoff, sem saberem se quando isto acabar ainda têm emprego ou não, ou que já foram despedidos. A todos aqueles que são tão invisíveis que nem os sei nomear: 
 
não sei se vamos ficar bem, esse tipo de certezas não são para nós. Não estamos incluídos no "estamos todos juntos", porque estragamos a narrativa e as pessoas aborrecem-se um bocado, e vá lá, se nós não trabalhamos como é que a economia se aguenta para que os outros não percam os seus empregos, e afinal a culpa até é nossa porque não lutamos, lutar é tão fácil, e historicamente é sabido que nos corre bem, e se estamos exaustos e nos acobardamos, bom, não tivessemos uma cabeça tão fraquinha. Mas também somos gente. Eu sei que neste momento é difícil acreditar nisso. Mas somos.

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