sábado, 28 de março de 2020

Diários de uma (não) quarentena

(I)


* Como há menos gente nas paragens, o autocarro que me levaria ao terminal passa mais cedo e não o consigo apanhar; como a quantidade de transportes foi bastante reduzida, não passará mais nenhum em tempo útil. Sigo a pé, e penso na ironia de haver menos gente em trânsito e eu chegar mais tarde ao trabalho. Canta um galo. Ouço as primeiras andorinhas desta Primavera. Está um céu azul sem mácula. Um varredor de rua assobia e invejo-lhe a boa disposição, mas tenho vontade de passar a fazer este trajecto a pé.

* Se alguém tosse no barco, já não é olhado com horror e desconfiança: todos seguimos, na medida do possível, as precauções aconselhadas, mas todos sabemos o que nos espera.

* O silêncio no barco, de manhã, chega a ser sepulcral. Não somos só menos. É como se houvesse alguma coisa vagamente indecente numa conversa em tom normal.

* Desisti de ler livros novos por agora, não tenho espaço mental para isso. Passeio "O Livro de Areia" na mala, como se fosse não só uma leitura, mas um talismã.

* Apesar de tudo há sol no rio, quebrado em mil estrelas.

* O metro convida-nos, pelos altifalantes, a cumprir um metro de distância de segurança,  dentro das carruagens. Conto as pessoas. É fisicamente impossível.


(II) 

* É difícil ser consistente no esforço de não desviar o corpo desta ferida, quando só me apetece dissociar o mais possível. Mas algum escapismo não só é legítimo como necessário para sair disto com vida. Preciso de encontrar o equilíbrio entre defender-me e pegar o boi pelos cornos. Primeira lição de estar presente: voltar a fazer as pazes com a solidão. O problema é que neste momento em que tantos se dedicam ao seu umbigo, enquanto têm a boca cheia de "solidariedade", a solidão é tão radical. Mas reaprender a viver no presente - e a não ser consumida por ele - liberta-te para que vivas o outro presente, aquele que importa (os "Calmos Vazios", aquela lição que sabias tão bem aos dezanove e que agora desaprendeste. E está mesmo na altura de pegares nos Estóicos).
Tempo também de recuperar as lições da última grande crise: "o mal que os outros escolhem fazer não é desculpa para seres má também", "não aceitar migalhas", etc.

* Tarefa higiénica da manhã: reduzir drasticamente os meus contactos nas redes sociais. 

* No trabalho lancho mais tarde que o resto das pessoas, para poder estar sozinha na copa e olhar os telhados, naquele ponto exacto em que telhas e céu se tocam. A luz já começa a reencontrar a sua força, e lembro-me de uma das minhas paisagens favoritas: os telhados de Lisboa numa manhã de Junho, vistos de uma certa janela nos claustros da Sé de Lisboa. 

* Trabalho de casa: aprender a trocar a compulsão para a partilha que ninguém me pediu pela auto-expressão, a partilha de mim para mim.

* O meu irmão está doente, pelo que tive de ser eu a levar compras ao pai e à mãe. Conversámos à porta, com dois metros de distância entre nós, mas no caminho de volta a casa é difícil não ficar presa nisto: eu passo por três transportes diferentes para ir trabalhar, e mesmo com o edifício a meio gás, estimo que seremos pelo menos uns 800 trabalhadores - e de repente sinto-me culpada tão culpada por isto. 


(III)

* Comecei as "Meditações" do Marco Aurélio. Ligam-se estranhamente bem com a vinheta "How To Be Perfectly Unhappy", do Matthew Inman, que descobri ontem à noite: "I'm not happy, and I don't pretend to be. Instead, I'm busy. I'm interested. I'm fascinated." Obrigada, acho que precisava disto. 

* Finalmente saio do buraco o tempo suficiente para que a raiva se transforme em acção. De associações de defesa do trabalhador ao Correio da Manhã, eu falo com quem me quiser ouvir. Não acredito que alguém queira, mas prefiro morrer a espernear que implodir. Tento equilibrar isso com os gestos possíveis de solidariedade concreta. Que eu não lute apenas porque agora me toca a mim.


(IV)

* Na Avenida da Liberdade as árvores estão mais nítidas contra o céu, e ouvem-se tanto os pássaros. É Sexta-Feira de uma semana que durou cem dias; tenho o coração cheio de raiva e cansaço, mas também deste silêncio sem precedentes, e sento-me num banco a olhar as árvores, o céu muito azul, a rua. Passa um carro da polícia e pára à minha frente. Sou a única pessoa até onde a vista alcança. Finjo que não os vejo. Observam-me, e não sei o que vêem, mas vão-se embora sem me dizer nada. 

* Antes de entrar para o barco fico um pouco na plataforma flutuante, de costas para quem entra, de frente para o rio e para Lisboa. Numa altura em tantos lutam com peso terrível do isolamento forçado, respiro um pouco melhor neste momento em que finalmente posso virar costas às pessoas e deixar que só o rio e a cidade me vejam.

4 comentários:

  1. Para mim e para ti, este verso "agora a minha solidão vê-se melhor". *

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  2. Como sempre consegues exprimir tanto do que sinto e guardo só para mim.

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    1. Querida Rita, já que estamos em sentido contrário a toda a gente, acho que quando isto acabar merecemos férias, não? Um grande abraço, quando quiseres falar (por agora à distância) já sabes.***

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