segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Óbvio

Os clássicos, ou mais precisamente as reacções que suscitam (indiferença, desdém ou entusiasmo), são um óptimo instrumento para se perceber com quem se está a falar. A indiferença é, naturalmente, a reacção da maioria, e sobre isso não há muito a dizer aqui. O desdém é, naturalmente, a reacção dos cultos e inteligentes. "Os Irmãos Karamazov, óbvio", "o Coltrane, óbvio", e passam para coisas obscuras como convém; para os cultos e inteligentes o reconhecimento universal é um sinal de mau gosto por parte das obras (são tão óbvias que talvez nem valha a pena lê-las?... Mas isto sou eu e a minha má vontade, não liguem).
E depois há o entusiasmo, o brilho nos olhos quando alguém refere um nome que lhes é querido, a reacção intempestiva quando não se gostou de alguma coisa. São as pessoas que perseguem patos nos jardins, e há sempre nelas algo de infantil, e uma certa tendência para não se calarem quando tomam o gosto a alguma coisa. São os cronópios, e é com estes que eu me quero entender. Está no Cortázar.

2 comentários:

  1. A indiferença é, naturalmente, a reacção da maioria
    O desdém é, naturalmente, a reacção dos cultos
    As pessoas que perseguem patos nos jardins

    Nunca li uma análise social tão deliciosa, Inês, as três classes do mundo (português?) actual. Espero que faça seguidores e acabe por ficar na História !!!

    (as minhas leituras são bem mais modestas. Depois das lendas canadianas, vou começar o Infinito num Junco)

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    1. Obrigada Mário! Mas não creio que tenha assim tanto de original - sem dúvida deve muito ao Cortázar e ao seu "A Volta ao Dia em 80 Mundos" - que é um antídoto maravilhoso tanto contra a apatia como contra a pretensão.
      Eu gosto de leituras modestas, e fiquei muito curiosa com "O Infinito num Junco".

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