Andei meses com a sensação de que a cabeça se apagou e ficaram só as luzes de presença. Agora abro as janelas e bato o pó dos tapetes no quintal. Voltei a ter vontade de ler, e com a leitura voltou a vontade de escrever.
Há dois anos arranjei um caderno preto de folhas lisas, muito simples e fino (para ser leve e portátil, que a escoliose não perdoa), e comecei a apontar coisas: fragmentos de ideias, passagens de livros que me mantiveram acordada de noite, angústias recorrentes, pistas de respostas, ideias para projectos fotográficos - caminhos possíveis, uma realização da minha vocação de respigadora, um jogo de espelhos e reenvios que revisito frequentemente e que serve de base para tudo o que possa vir depois; e apesar da sensação frustrante de que passo mais tempo só com as luzes de emergência acesas que a desbravar caminho, os "cadernos pretos" crescem.
Tirando umas ideias soltas para um projecto fotográfico que ainda está por realizar (mas isso é todo um outro crux), a primeira coisa que apontei nos cadernos foram passagens do "Livro do Chá", de Okakura Kakuzō. Para um livro tão pequeno, está tão cheio de ideias e pistas que quase o podia ter transcrito por inteiro. Há considerações acerca da arte oriental e ocidental, há muito acerca de chá, claro, mas acima de tudo é um tratado impressionante acerca do efémero e do frágil, do imperfeito. Algumas das frases que transcrevi ressoaram tanto que acabaram por se transformar numa espécie de frontão para os cadernos, uma síntese do Fio que une tudo o que cabe dentro deles. Ao falar da Sala-de-Chá Okakura descreve-a como "uma estrutura efémera, construída para abrigar um impulso poético", e eu continuei:
"Uma derivação possível disto (e talvez uma boa descrição do que procuro com as minhas fotografias dos "Calmos Vazios") é: 'Os dias: estruturas efémeras, construídas para abrigar o impulso poético'. É o Imperfeito que abre nos dias as suas possibilidades poéticas; devia ser ele o deus dos dias. Como nos passeios de máquina fotográfica na mão, no início do entusiasmo com a fotografia. Ando há demasiado tempo a fugir do imperfeito. Em dias como este a recuperação é mais fácil, o regresso àquele olhar que procura o que não se vê, para responder com isso à lacuna que reconhece em si mesma e nas coisas. E é daí, dessa mesma lacuna, que nasce o impulso criador; Okakura tem toda a razão quando diz que o Ocidente se expandiu "à custa do desassossego", e nem eu queria outro ponto de partida. O que quero é precisamente fixar esse ponto de partida, gravar o Desassossego na pele."
Desde que escrevi isto aprendi que tudo o que se ritualiza e consagra
corre o risco de petrificar - até o Desassossego - e que isso ocorre quando, por termos tão pouco, pedimos às nossas
narrativas e processos de construção de identidade e sentido mais do que
elas nos podem dar.
Há dias que são só dias e em que não há sentido possível. Não é a melhor altura para
romantismos e Imperfeitos com maiúscula; creio que o tom de censura de Okakura quando fala do "Desassossego"
ocidental, apesar de ser um conceito paralelo à "adoração do Imperfeito"
que expõe, se deve à nossa tendência para tentar tornar a lacuna
grandiloquente, geralmente em processos de fuga para a frente, que só nos tornam mais miseráveis.
Sou ocidental da cabeça aos pés e continuo a acreditar (desde as aulas do Nuno Ferro, há muitos anos atrás) que o Desassossego é a nossa maior riqueza. Mas parece-me sábio reconhecer que há alturas em não há muito
mais a fazer que esperar no escuro enquanto o vazio percorre o seu curso, e esperar que isso não dure para sempre. E só quando um dia se acorda e se abre a
janela, com aquela sensação de ter apanhado pancada, que se tem quando se passou muitas horas na cama sem conseguir dormir, é que se está em condições de transformar a lacuna em criação. Do lado de cá é bem mais fácil acreditar no Imperfeito com maiúscula. Ainda me dói demasiado o corpo para grandes romantismos, mas tudo bem.
Há dois anos arranjei um caderno preto de folhas lisas, muito simples e fino (para ser leve e portátil, que a escoliose não perdoa), e comecei a apontar coisas: fragmentos de ideias, passagens de livros que me mantiveram acordada de noite, angústias recorrentes, pistas de respostas, ideias para projectos fotográficos - caminhos possíveis, uma realização da minha vocação de respigadora, um jogo de espelhos e reenvios que revisito frequentemente e que serve de base para tudo o que possa vir depois; e apesar da sensação frustrante de que passo mais tempo só com as luzes de emergência acesas que a desbravar caminho, os "cadernos pretos" crescem.
Tirando umas ideias soltas para um projecto fotográfico que ainda está por realizar (mas isso é todo um outro crux), a primeira coisa que apontei nos cadernos foram passagens do "Livro do Chá", de Okakura Kakuzō. Para um livro tão pequeno, está tão cheio de ideias e pistas que quase o podia ter transcrito por inteiro. Há considerações acerca da arte oriental e ocidental, há muito acerca de chá, claro, mas acima de tudo é um tratado impressionante acerca do efémero e do frágil, do imperfeito. Algumas das frases que transcrevi ressoaram tanto que acabaram por se transformar numa espécie de frontão para os cadernos, uma síntese do Fio que une tudo o que cabe dentro deles. Ao falar da Sala-de-Chá Okakura descreve-a como "uma estrutura efémera, construída para abrigar um impulso poético", e eu continuei:
"Uma derivação possível disto (e talvez uma boa descrição do que procuro com as minhas fotografias dos "Calmos Vazios") é: 'Os dias: estruturas efémeras, construídas para abrigar o impulso poético'. É o Imperfeito que abre nos dias as suas possibilidades poéticas; devia ser ele o deus dos dias. Como nos passeios de máquina fotográfica na mão, no início do entusiasmo com a fotografia. Ando há demasiado tempo a fugir do imperfeito. Em dias como este a recuperação é mais fácil, o regresso àquele olhar que procura o que não se vê, para responder com isso à lacuna que reconhece em si mesma e nas coisas. E é daí, dessa mesma lacuna, que nasce o impulso criador; Okakura tem toda a razão quando diz que o Ocidente se expandiu "à custa do desassossego", e nem eu queria outro ponto de partida. O que quero é precisamente fixar esse ponto de partida, gravar o Desassossego na pele."
Desde que escrevi isto aprendi que tudo o que se ritualiza e consagra
corre o risco de petrificar - até o Desassossego - e que isso ocorre quando, por termos tão pouco, pedimos às nossas
narrativas e processos de construção de identidade e sentido mais do que
elas nos podem dar.
Há dias que são só dias e em que não há sentido possível. Não é a melhor altura para
romantismos e Imperfeitos com maiúscula; creio que o tom de censura de Okakura quando fala do "Desassossego"
ocidental, apesar de ser um conceito paralelo à "adoração do Imperfeito"
que expõe, se deve à nossa tendência para tentar tornar a lacuna
grandiloquente, geralmente em processos de fuga para a frente, que só nos tornam mais miseráveis.
Sou ocidental da cabeça aos pés e continuo a acreditar (desde as aulas do Nuno Ferro, há muitos anos atrás) que o Desassossego é a nossa maior riqueza. Mas parece-me sábio reconhecer que há alturas em não há muito
mais a fazer que esperar no escuro enquanto o vazio percorre o seu curso, e esperar que isso não dure para sempre. E só quando um dia se acorda e se abre a
janela, com aquela sensação de ter apanhado pancada, que se tem quando se passou muitas horas na cama sem conseguir dormir, é que se está em condições de transformar a lacuna em criação. Do lado de cá é bem mais fácil acreditar no Imperfeito com maiúscula. Ainda me dói demasiado o corpo para grandes romantismos, mas tudo bem.
Obrigada*
ResponderEliminarEu é que te agradeço, querida Patrícia*
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