sábado, 31 de maio de 2025

Saint-Lizier



Na pequena catedral de Saint-Lizier
perdida no século doze nos Pirenéus
de onde, na abside, um Pantocrator
muito antigo e alarmante nos
observa de olhos muito abertos,
como se espantado de nos ver ali,
existe também uma Anunciação
num fresco erodido e pouco iluminado.
Do anjo vemos o rosto, as asas, e do corpo 
o gesto adivinhado do joelho no chão.
Da Virgem resta uma mão cruzada 
em espanto sobre o peito, outra que talvez
procure a solidez do banco
contra a invasão do sagrado,
e a pomba que desce dos céus
com a certeza de uma seta
que sabe que não falhará o alvo.
Entre os dois, ocupando
quase todo o espaço, a pedra clara que
o tempo devolveu à sua nudez inicial;
entre os dois, o espaço
indizível e nu do sagrado.
Irrepresentável?
A fresta de silêncio que o tempo impôs
na sombra do fresco podia sustentá-lo,
mas não creio que se tenha desfeito 
o trabalho do pintor —
essa luta de Jacob com o Anjo
que tenta conter a imagem poética,
a experiência antiquíssima do sagrado,
na linguagem, no gesto do pigmento;
o tempo apenas se encarregou,
no seu longo trabalho de erosão,
de iluminar a inutilidade e a nobreza
dessa teimosia de que não
sabemos prescindir.
As figuras interrompem a sua representação
e sussurram entre si, atentas
a quem entra, e ao trabalho
que o abismo do sagrado
e a pulsão iluminante da poesia
farão, ou não, de cada um.


(A fotografia está péssima e tremida, mas os frescos tinham pouca iluminação, uma questão de conservação, imagino.)

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Antídoto

Há algum tempo, num dia muito zangado, escrevi "Há dias aos quais não se sobrevive / intacto, e em que museus e catedrais / são coisas que fizemos mas não merecemos." Hoje Wisława Szymborska respondeu-me, com o seu poema "Vermeer".
 
"So long as that woman from the Rijksmuseum
in painted quiet and concentration
keeps pouring milk day after day
from the pitcher to the bowl
the World hasn’t earned
the world’s end."

segunda-feira, 17 de março de 2025

O riso

Depois de quarenta anos de pequenas humilhações diárias, vendeu a alma ao diabo pelo dom da resposta rápida e demolidora. Gozou-o duas semanas — o tempo de encontrar o primeiro despeitado com uma navalha. Esvaiu-se em sangue a rir, um riso desbragado e selvagem de contentamento que havia de perseguir o assassino pelo resto da vida. No Inferno não sabiam o que fazer com ele: entre os gritos de dor, e independentemente da tortura atribuída, ria como um danado, e gozava os demónios com humilhações e remoques que ninguém conseguia contestar. No inferno já não o queriam, e no Paraíso não o podiam aceitar. Foi a única alma da História a quem foi concedido o descanso eterno, sem recompensa nem castigo. Fechou uma segunda vez os olhos, agora com alívio, e ainda um esgar de gargalhada.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Janeiro

The fog comes
on little cat feet.
It sits looking
over harbor and city
on silent haunches
and then moves on.

Carl Sandburg