terça-feira, 8 de julho de 2025

Sagrado

“The subject matter of a poem is comprised of a crowd of recollected occasions of feeling, among which the most important are recollections of encounters with sacred beings or events.” 

W. H. Auden, The Dyer's Hand and Other Essays

Fogo marítimo

A casa no infinito
no conhecimento instintivo
das imagens iniciais,
sem medo da beleza
que homens sábios e tolos
dizem ser terrível,
proíbe uma casa confortável
na linguagem.
Poucas distâncias serão
tão longas como a que vai
do corpo no mar ou no fogo
à língua encerada dos homens.
Sabias que “fogo grego”
não é o nome original dessa 
substância de clarão e mito
a que os Bizantinos
chamaram também
pŷr thalássion: fogo do mar?
É disto que falo, de uma civilização 
que acredita nas possibilidades da poesia,
quando nenhuma derivação explicativa 
poder ser mais iluminante, mais bela, 
mais justa, que dizer “fogo marítimo”
e deixar, depois, que o silêncio reine.
E no entanto também eu defendo
este abrigo com devoção e fúria,
esta arquitectura de labirintos e clarões
alicerçada na pulsão dos desejos 
e no desejo sensível da lucidez,
e não sei que fazer da suspeita
de que, por vezes, a linguagem 
é uma traição às imagens que 
primeiro fundaram o instinto poético,
um vício de excesso interpretativo, 
uma danação de espelhos.
E no entanto também eu procuro
a textura áspera e consoladora
sob a mão que desliza no papel;
tão real como o fogo ou o mar
que não sei se assim traio ou repercuto
nos ossos, na pele, no instinto
desse mundo inicial que não sei 
se me pede silêncio ou iluminação. 

sábado, 31 de maio de 2025

Saint-Lizier



Na pequena catedral de Saint-Lizier
perdida no século doze nos Pirenéus
de onde, na abside, um Pantocrator
muito antigo e alarmante nos
observa de olhos muito abertos,
como se espantado de nos ver ali,
existe também uma Anunciação
num fresco erodido e pouco iluminado.
Do anjo vemos o rosto, as asas, e do corpo 
o gesto adivinhado do joelho no chão.
Da Virgem resta uma mão cruzada 
em espanto sobre o peito, outra que talvez
procure a solidez do banco
contra a invasão do sagrado,
e a pomba que desce dos céus
com a certeza de uma seta
que sabe que não falhará o alvo.
Entre os dois, ocupando
quase todo o espaço, a pedra clara que
o tempo devolveu à sua nudez inicial;
entre os dois, o espaço
indizível e nu do sagrado.
Irrepresentável?
A fresta de silêncio que o tempo impôs
na sombra do fresco podia sustentá-lo,
mas não creio que se tenha desfeito 
o trabalho do pintor —
essa luta de Jacob com o Anjo
que tenta conter a imagem poética,
a experiência antiquíssima do sagrado,
na linguagem, no gesto do pigmento;
o tempo apenas se encarregou,
no seu longo trabalho de erosão,
de iluminar a inutilidade e a nobreza
dessa teimosia de que não
sabemos prescindir.
As figuras interrompem a sua representação
e sussurram entre si, atentas
a quem entra, e ao trabalho
que o abismo do sagrado
e a pulsão iluminante da poesia
farão, ou não, de cada um.

segunda-feira, 17 de março de 2025

O riso

Depois de quarenta anos de pequenas humilhações diárias, vendeu a alma ao diabo pelo dom da resposta rápida e demolidora. Gozou-o duas semanas — o tempo de encontrar o primeiro despeitado com uma navalha. Esvaiu-se em sangue a rir, um riso desbragado e selvagem de contentamento que havia de perseguir o assassino pelo resto da vida. No Inferno não sabiam o que fazer com ele: entre os gritos de dor ria como um danado, e gozava os demónios com humilhações e remoques que ninguém conseguia contestar. No inferno já não o queriam, e no Paraíso não o podiam aceitar. Foi a única alma da História a quem foi concedido o descanso eterno, sem recompensa nem castigo. Fechou uma segunda vez os olhos, agora com alívio, e ainda um esgar de gargalhada.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Janeiro

The fog comes
on little cat feet.
It sits looking
over harbor and city
on silent haunches
and then moves on.

Carl Sandburg