Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs, Nous irons comme en barque à travers le brouillard.
Nous irons vers les îles de beauté où les femmes Sont belles comme des arbres et nues comme des âmes ; Nous irons vers les îles où les hommes sont doux Comme des lions, avec des cheveux longs et roux. Viens, le monde incréé attend de notre rêve Ses lois, ses joies, les dieux qui font fleurir la sève Et le vent qui fait luire et bruire les feuilles. Viens, le monde innocent va sortir d'un cercueil.
Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs, Nous irons comme en barque à travers le brouillard.
Nous irons vers les îles où il y a des montagnes D'où l'on voit l'étendue paisible des campagnes, Avec des animaux heureux de brouter l'herbe, Des bergers qui ressemblent à des saules, et des gerbes Qu'on monte avec des fourches sur le dos des charrettes. Il fait encore soleil et les moutons s'arrêtent Près de l'étable, devant la porte du jardin, Qui sent la pimprenelle, l'estragon et le thym.
Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs, Nous irons comme en barque à travers le brouillard.
Nous irons vers les îles où les pins gris et bleus Chantent quand le vent d'ouest passe entre leurs cheveux. Nous écouterons, couchés sous leur ombre odorante, La plainte des esprits que le désir tourmente Et qui attendent l'heure où leur chair doit revivre. Viens, l'infini se trouble et rit, le monde est ivre : Nous entendrons peut-être, en rêvant sous les pins, Des mots d'amour, des mots divins, des mots lointains.
Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs, Nous irons comme en barque à travers le brouillard.
Desde já peço desculpa pelo abuso, Inês, de ter inserido o poema de Remy de Gourmont a seco, sem explicação. Na altura, pretendi contrapor aos nevoeiros mais ou menos peçonhentos que nos andam a assolar um poema mais luminoso onde esse nevoeiro é ultrapassável e para lá dele está uma ilha onde é possível a alegria. Depois recebi um novo poema onde "escorre um óleo negro e peçonhento pelas paredes da Europa". Eu sei que foi retirado e que é novo abuso meu citá-lo, só que esse poema me afectou imenso, foi uma facada brutal que espelha com incrível expressividade o que está a acontecer à nossa volta. Li e reli. Não será 'perfeito' mas é arrasadoramente verdadeiro. Eu tento resistir, no estilo simbolista neo-romântico de Remy de Gourmont, mas o seu poema retirado (que eu guardei) continua a ressoar como anúncio de hecatombe da civilização. E dia a dia acumulam-se mais sinais e notícias disso mesmo. Tenho duas certezas: uma, que para a maior parte da humanidade, que não está na Europa nem Norte-América, isso é irrelevante e se calhar até observam melhorias, com um futuro esperançoso. São a humanitas felix. Outra, que há muitas e fortes resistências a essa hecatombe mesmo entre nós, à nossa volta. Sinceramente, não me lembro de uma Europa tão bem governada por tão boa gente como agora. "1939 escorre nas praças ocidentais" é só meia verdade. A outra meia é que 1939 foi escorraçado também dessas mesmas praças, e que a nossa geração teve um papel activo nesse escorraçar. Talvez a Inês se tenha arrependido do diagnóstico, genial quanto a mim no seu excesso, mas apetece-me pedir-lhe que reponha o poema, porque é um explosivo, terrível, letal esconjuro, onde todo o mal é jorrado de volta contra quem o está a relançar. Se calhar é melhor não publicar isto. Entenda como desabafo ao seu terminal 'recebemos caixões'.
Muito obrigada pelo seu comentário, Mário. Toca-me muito por várias razões. Em primeiro lugar, em relação ao meu poema, andei muito tempo sem saber se o havia de publicar, pelas mesmas razões que me levaram a apagá-lo: pudor. Pergunto-me se é legítimo fazer poesia com catástrofes. Sei que é, que se calhar até é essencial, mas também acho que o mínimo que se pode exigir para que seja legítima, é que essa poesia (ou filme, livro, quadro, o que for), seja boa: essa qualidade parece-me uma garantia possível contra a pornografia ou sentimentalismo da catástrofe; e se não desconfio totalmente da minha avaliação em relação ao que escrevo, quando se trata de prosa ou ensaio, tenho um grande ângulo cego em relação à minha poesia: não faço ideia nenhuma. E tendo em conta o assunto, em caso de dúvida, preferi que ganhasse o pudor. Há dias encontrei esta passagem na página de Wikipedia sobre Wisława Szymborska: “Her reputation rests on a relatively small body of work, fewer than 350 poems. When asked why she had published so few poems, she said, 'I have a trash can in my home'.” Já várias vezes me arrependi de o ter apagado e já várias vezes tive a certeza de que fiz bem. Mas se algum dia decidir voltar aqui de forma menos errática, pensarei se o quero repor.
Em segundo lugar, queria agradecer-lhe: emocionou-me honestamente que me lembrasse de que ainda há quem lute. Eu sei-o, e mesmo nos meus momentos mais sombrios, refiro-me a mais uma agonia do Ocidente, e não à agonia do Ocidente. Mas o Mário referiu gerações, e creio que muita da minha frustração hoje também passa por uma questão geracional. Sempre resisti muito aos discursos acerca das "novas gerações que estão a arruinar o mundo", sabemos perfeitamente que se fossem verdade a humanidade teria acabado à segunda geração. Mas acho que é justo dizer que as gerações mais recentes (à pontinha das quais - na teoria - ainda pertenço), têm mostrado alguns comportamentos e posições indignas que (e é aqui que assenta muita da minha frustração) em vez de ficarem contidas nas parvoíces normais da juventude, têm durado para lá do que seria o seu tempo justo, com repercussões no discurso político, social e moral que são graves, e que se pagam - e que como sempre, pagam os mais vulneráveis. Não sei se conhece a expressão de João Bénard da Costa, acerca da desilusão que muitos católicos progressistas sentiram quando, depois da alegria do Vaticano II, tudo implodiu: "vencidos do catolicismo". O Pedro Mexia tem um poema que a partir dessa expressão diz: "Vencido do catolicismo, sem plural / que me conforte ou confronte, / sem o ombro gratuito, conveniente, / de uma geração que me console." Neste caso não se trata de religião, mas acho que percebe onde quero chegar. Sei que a glorificação ou vilificação das diferentes gerações é sempre também mitologia, e que a sensação de não se enquadrar na geração a que se pertence é antiga e muito comum. Mas se no dia-a-dia isso é geralmente uma questão de pouco mais que gostos e umbigo, existem os momentos em a História acelera e se sente que "agora é a sério". E estas gerações gastaram tanto tempo e energia, na última década, a gritar "agora é a sério" a cada pequeno insulto ou ressentimento, que agora que é a sério - a sério como não era há muito tempo - estão de peito cheio por já terem feito o seu trabalho, e prontas a não querer saber de mais nada. As mesmas pessoas que durante uma década insultaram e caracterizaram como "cúmplices do Mal" todos os que não foram na loucura dos seus ressentimentos pequeninos, agora parecem perfeitamente dispostas a afirmar que todos têm o direito a focar-se na sua hashtagmentalhealth, e não têm nada para dizer. Por exemplo, há uns anos ouvi uma coisa que permaneceu comigo: quando George W. Bush foi presidente, houve um grande influxo de arte popular como resposta, em oposição. Quando Trump teve o seu primeiro mandato, houve muita contestação nas redes sociais, mas já ninguém se deu ao trabalho de reagir a isso com arte. Como deve imaginar, tenho as minhas reticências em relação a uma arte "engajada" (daí também o meu próprio pudor), mas uma resposta genuinamente artística seria ainda um sinal de vida, por contraste com a performatividade vazia que hoje vemos, pobre caricatura de contestação, e ainda pior caricatura de arte. Sim, felizmente ainda há quem lute nas praças Ocidentais. Mas devia haver mais jovens nessa praça, e tenho de acreditar que existem, mas há dias em que não sei onde andam.
Quanto ao poema de Gourmont, fez muito bem em partilhá-lo, e fará bem em partilhar todos os poemas, textos ou arte de que se lembrar. É sempre um gosto ver que a arte e a literatura a chamar mais arte e literatura.
Inês
(Publiquei para poder responder-lhe. Se preferir que apague tudo depois de ler, é só dizer).
É sempre especial ler os seus textos, Inês. Estava longe de esperar tanta atenção, obrigado! Vem aí a Primavera, que seja uma Primavera Europeia, nalgum sentido pelo menos. O melhor que pode acontecer é que o poema perca pertinência para ser reposto. Que seja uma Primavera florida para si também, Inês, precisamos de flores sem ser para campas.
Le brouillard
ResponderEliminarSimone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.
Nous irons vers les îles de beauté où les femmes
Sont belles comme des arbres et nues comme des âmes ;
Nous irons vers les îles où les hommes sont doux
Comme des lions, avec des cheveux longs et roux.
Viens, le monde incréé attend de notre rêve
Ses lois, ses joies, les dieux qui font fleurir la sève
Et le vent qui fait luire et bruire les feuilles.
Viens, le monde innocent va sortir d'un cercueil.
Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.
Nous irons vers les îles où il y a des montagnes
D'où l'on voit l'étendue paisible des campagnes,
Avec des animaux heureux de brouter l'herbe,
Des bergers qui ressemblent à des saules, et des gerbes
Qu'on monte avec des fourches sur le dos des charrettes.
Il fait encore soleil et les moutons s'arrêtent
Près de l'étable, devant la porte du jardin,
Qui sent la pimprenelle, l'estragon et le thym.
Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.
Nous irons vers les îles où les pins gris et bleus
Chantent quand le vent d'ouest passe entre leurs cheveux.
Nous écouterons, couchés sous leur ombre odorante,
La plainte des esprits que le désir tourmente
Et qui attendent l'heure où leur chair doit revivre.
Viens, l'infini se trouble et rit, le monde est ivre :
Nous entendrons peut-être, en rêvant sous les pins,
Des mots d'amour, des mots divins, des mots lointains.
Simone, mets ton manteau et tes gros sabots noirs,
Nous irons comme en barque à travers le brouillard.
Remy de Gourmont, Simone, 1897.
Desde já peço desculpa pelo abuso, Inês, de ter inserido o poema de Remy de Gourmont a seco, sem explicação. Na altura, pretendi contrapor aos nevoeiros mais ou menos peçonhentos que nos andam a assolar um poema mais luminoso onde esse nevoeiro é ultrapassável e para lá dele está uma ilha onde é possível a alegria. Depois recebi um novo poema onde "escorre um óleo negro e peçonhento pelas paredes da Europa". Eu sei que foi retirado e que é novo abuso meu citá-lo, só que esse poema me afectou imenso, foi uma facada brutal que espelha com incrível expressividade o que está a acontecer à nossa volta. Li e reli. Não será 'perfeito' mas é arrasadoramente verdadeiro. Eu tento resistir, no estilo simbolista neo-romântico de Remy de Gourmont, mas o seu poema retirado (que eu guardei) continua a ressoar como anúncio de hecatombe da civilização. E dia a dia acumulam-se mais sinais e notícias disso mesmo. Tenho duas certezas: uma, que para a maior parte da humanidade, que não está na Europa nem Norte-América, isso é irrelevante e se calhar até observam melhorias, com um futuro esperançoso. São a humanitas felix. Outra, que há muitas e fortes resistências a essa hecatombe mesmo entre nós, à nossa volta. Sinceramente, não me lembro de uma Europa tão bem governada por tão boa gente como agora. "1939 escorre nas praças ocidentais" é só meia verdade. A outra meia é que 1939 foi escorraçado também dessas mesmas praças, e que a nossa geração teve um papel activo nesse escorraçar. Talvez a Inês se tenha arrependido do diagnóstico, genial quanto a mim no seu excesso, mas apetece-me pedir-lhe que reponha o poema, porque é um explosivo, terrível, letal esconjuro, onde todo o mal é jorrado de volta contra quem o está a relançar. Se calhar é melhor não publicar isto. Entenda como desabafo ao seu terminal 'recebemos caixões'.
ResponderEliminarMuito obrigada pelo seu comentário, Mário. Toca-me muito por várias razões. Em primeiro lugar, em relação ao meu poema, andei muito tempo sem saber se o havia de publicar, pelas mesmas razões que me levaram a apagá-lo: pudor. Pergunto-me se é legítimo fazer poesia com catástrofes. Sei que é, que se calhar até é essencial, mas também acho que o mínimo que se pode exigir para que seja legítima, é que essa poesia (ou filme, livro, quadro, o que for), seja boa: essa qualidade parece-me uma garantia possível contra a pornografia ou sentimentalismo da catástrofe; e se não desconfio totalmente da minha avaliação em relação ao que escrevo, quando se trata de prosa ou ensaio, tenho um grande ângulo cego em relação à minha poesia: não faço ideia nenhuma. E tendo em conta o assunto, em caso de dúvida, preferi que ganhasse o pudor. Há dias encontrei esta passagem na página de Wikipedia sobre Wisława Szymborska: “Her reputation rests on a relatively small body of work, fewer than 350 poems. When asked why she had published so few poems, she said, 'I have a trash can in my home'.” Já várias vezes me arrependi de o ter apagado e já várias vezes tive a certeza de que fiz bem. Mas se algum dia decidir voltar aqui de forma menos errática, pensarei se o quero repor.
EliminarEm segundo lugar, queria agradecer-lhe: emocionou-me honestamente que me lembrasse de que ainda há quem lute. Eu sei-o, e mesmo nos meus momentos mais sombrios, refiro-me a mais uma agonia do Ocidente, e não à agonia do Ocidente. Mas o Mário referiu gerações, e creio que muita da minha frustração hoje também passa por uma questão geracional. Sempre resisti muito aos discursos acerca das "novas gerações que estão a arruinar o mundo", sabemos perfeitamente que se fossem verdade a humanidade teria acabado à segunda geração. Mas acho que é justo dizer que as gerações mais recentes (à pontinha das quais - na teoria - ainda pertenço), têm mostrado alguns comportamentos e posições indignas que (e é aqui que assenta muita da minha frustração) em vez de ficarem contidas nas parvoíces normais da juventude, têm durado para lá do que seria o seu tempo justo, com repercussões no discurso político, social e moral que são graves, e que se pagam - e que como sempre, pagam os mais vulneráveis.
EliminarNão sei se conhece a expressão de João Bénard da Costa, acerca da desilusão que muitos católicos progressistas sentiram quando, depois da alegria do Vaticano II, tudo implodiu: "vencidos do catolicismo". O Pedro Mexia tem um poema que a partir dessa expressão diz: "Vencido do catolicismo, sem plural / que me conforte ou confronte, / sem o ombro gratuito, conveniente, / de uma geração que me console." Neste caso não se trata de religião, mas acho que percebe onde quero chegar. Sei que a glorificação ou vilificação das diferentes gerações é sempre também mitologia, e que a sensação de não se enquadrar na geração a que se pertence é antiga e muito comum. Mas se no dia-a-dia isso é geralmente uma questão de pouco mais que gostos e umbigo, existem os momentos em a História acelera e se sente que "agora é a sério". E estas gerações gastaram tanto tempo e energia, na última década, a gritar "agora é a sério" a cada pequeno insulto ou ressentimento, que agora que é a sério - a sério como não era há muito tempo - estão de peito cheio por já terem feito o seu trabalho, e prontas a não querer saber de mais nada. As mesmas pessoas que durante uma década insultaram e caracterizaram como "cúmplices do Mal" todos os que não foram na loucura dos seus ressentimentos pequeninos, agora parecem perfeitamente dispostas a afirmar que todos têm o direito a focar-se na sua hashtagmentalhealth, e não têm nada para dizer. Por exemplo, há uns anos ouvi uma coisa que permaneceu comigo: quando George W. Bush foi presidente, houve um grande influxo de arte popular como resposta, em oposição. Quando Trump teve o seu primeiro mandato, houve muita contestação nas redes sociais, mas já ninguém se deu ao trabalho de reagir a isso com arte. Como deve imaginar, tenho as minhas reticências em relação a uma arte "engajada" (daí também o meu próprio pudor), mas uma resposta genuinamente artística seria ainda um sinal de vida, por contraste com a performatividade vazia que hoje vemos, pobre caricatura de contestação, e ainda pior caricatura de arte.
Sim, felizmente ainda há quem lute nas praças Ocidentais. Mas devia haver mais jovens nessa praça, e tenho de acreditar que existem, mas há dias em que não sei onde andam.
Quanto ao poema de Gourmont, fez muito bem em partilhá-lo, e fará bem em partilhar todos os poemas, textos ou arte de que se lembrar. É sempre um gosto ver que a arte e a literatura a chamar mais arte e literatura.
Inês
(Publiquei para poder responder-lhe. Se preferir que apague tudo depois de ler, é só dizer).
É sempre especial ler os seus textos, Inês. Estava longe de esperar tanta atenção, obrigado! Vem aí a Primavera, que seja uma Primavera Europeia, nalgum sentido pelo menos. O melhor que pode acontecer é que o poema perca pertinência para ser reposto. Que seja uma Primavera florida para si também, Inês, precisamos de flores sem ser para campas.
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