sábado, 8 de junho de 2019

Não é grave

Ando sem vontade de muitas coisas, desde a internet em geral à fotografia, para a qual não me sinto inspirada há bastante tempo. Como em quase tudo comigo, a minha fotografia tende a ser marcadamente dual: de um lado as fotografias que são como um diário, e que servem acima de tudo para tornar os meus dias um bocadinho mais acolhedores e para me sentir protegida pelas coisas que me fazem feliz: fotografo os livros que leio, os detalhes da minha casa, os meus passeios e viagens e as coisas que neles colecciono, momentos bons do meu dia-a-dia; do outro lado está a fotografia que é expressão de curiosidade e de dúvidas, e das narrativas que arranjo para tentar responder a tudo isso: são as casas abandonadas onde não devia entrar, e que são o mais perto que consigo estar de umas raízes que me estão sempre vedadas; são os reflexos e os espelhos, tentativa de lidar (sem cair lá para dentro) com a minha obsessão com a identidade; e é tudo o que me fale da incerteza, da procura e dos interstícios. As duas faces são bastante auto-contidas, mas eu preciso de ambas na mesma medida.

Acontece que ultimamente a primeira faceta perdeu sinceridade e naturalidade (viva o instagram, por mais que uma pessoa jure que não se deixa influenciar por essas coisas?), e a segunda anda desaparecida em combate. Tenho umas quantas ideias em relação à segunda (Ariadne; 52 semanas de auto-retratos com temas pré-estabelecidos (que até já seleccionei); a sempre adiada colecção em livro de-mim-para-mim ou em exposição (partindo do princípio bastante optimista de que alguém me quereria expôr) das minhas fotografias do Pergulho e da Casa do Forno); e na pouca paciência que de vez em quando lá vou arranjando para o instagram, tenho feito por mudar o foco da primeira faceta para a segunda, menos manipulável por vontades (ainda que inconscientes) de mostrar só o bonito. Além disso, deixei um pouco de lado o portfolio "bonito" que tinha no Carbonmade, e estou a tentar uma organização mais comedida, pensada e estruturada no Behance, e que sinto que foi até agora o melhor passo no caminho certo). Só que não me apetece, ou não tenho de momento espaço mental para mais. Nem tenho saudades de fotografar, e isso é novo e deixa-me um pouco triste. 

Não é o fim do mundo, não é reflexo de nenhuma tragédia pessoal. Mais que qualquer outra coisa, cada vez mais tenho a certeza de que a ideia do artista atormentado é das maiores patranhas que os últimos séculos nos impingiram. É que no fundo é fácil: quando se chega aos trinta e cinco sem conseguir passar de um trabalho de callcenter; quando as tentativas de não se deixar afogar nisso, procurando os círculos onde supostamente estariam os nossos pares, apenas mostram a incompetência e burocracia da academia e o pedantismo em circuito fechado da cultura, onde quase sempre só se entra por nascimento ou cunha; quando todos os dias há mais um amigo a ser comido pela falta de perspectivas e a finalmente desistir de sequer tentar - isso não dá uma alma a rebentar pelas costuras de inspiração e vontade de criar, dá é um cansaço muito grande.

E eu até faço parte do pequeno grupo das pessoas com sorte, porque ainda não desistiram completamente. E que sinta um nó no coração é bom sinal, porque a alternativa é a apatia, e eu sei que ela é mais perigosa que qualquer raiva. Acho que devia escrever, mas as coisas de que precisaria de falar são-me demasiado próximas e estão em carne viva, e não sei se tenho mãos que cheguem para as contar da maneira lúcida que gostaria, e conheço-me demasiado bem para não levar a sério a tendência para o sentimentalismo e para a auto-biografia que ameaça tudo o que escrevo com a mediocridade (desisti da poesia por isso, se a minha voz em prosa já é sentimental, na poesia é um verdadeiro desastre. E eu sei que para chegar a fazer bem é preciso fazer mal primeiro, mas não me digam que "mais vale fazer mal do que não fazer"; se a ideia do génio que cria sem qualquer treino é uma patranha, a ideia de que, para criar, ter talento ou não ter é igual, não me deixa muito mais sossegada).
"Assim como acabo um livro e algo fica por dizer, na vida dá-se a mesma coisa. Não é grave." dizia numa entrevista a Agustina. Um dia vou ter saudades da máquina ou da caneta e do caderno, e voltarei a criar, ou a deixar-me disso de vez; seja como for, não será grave.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Agustina (1922 - 2019)




"Eu não queria o êxito fácil, as opiniões, os favores, agasalho da tertúlia e o calor da insubordinação, dos injustiçados e dos paladinos da razão. Eu só queria escrever, entrar no coração das pessoas e beber-lhes o sangue, avançando sempre, criando enredos e fazendo saltar os personagens das páginas. Há pouca gente que perceba que escrever é uma espécie de danação em que às vezes se tem o encontro com Deus."

Agustina Bessa-Luís (citação na revista do Expresso, 24.03.2018)

terça-feira, 7 de maio de 2019

segunda-feira, 22 de abril de 2019

quarta-feira, 17 de abril de 2019

terça-feira, 16 de abril de 2019

Nublado

"Eu conheço-me apenas de vista, atenção.
Sou uma pessoa que, se me vir na rua,
atravesso para o outro lado."

Ricardo Araújo Pereira no Governo Sombra




Eu conheço-me apenas de vista
com a imprecisão de um reflexo
numa montra, com a perplexidade
de quem enfrenta um espelho hostil
numa noite de insónia.
Estranho-me a cada amigo
que se perdeu ou que perdi
a cada traço de alegria
a que renunciei
por cansaço ou sofreguidão
e mesmo nas fotografias mais felizes
em que mais quero acreditar
que ainda sou eu, não sei se sou
Sure enemies haunt you
with spit and derision
but friends are the ones
who can put you in exile
canta o trovador do desencanto
que se lava em euforias tristes
e cada amigo que se perde
é um espelho com o qual
se quebrou uma aliança

São névoa e cacos
a minha obsessão com a biografia
a loucura com que acredito
que efabular-me
me pode salvar do mundo
do meu medo do mundo
Resta-me então a viagem
que talvez não chegue mas ajuda
e a generosidade inesperada
de quem me acena do outro lado do rio
à beira do qual todos esperamos
um sinal, um vento favorável,
ou simplesmente o som da água que corre
quando já desistimos de caminhar

Sozinha num comboio sento-me
de frente para a paisagem
até o meu rosto se fundir com o seu
e é aí que me reconheço
e nos meus olhos parece haver ainda
um rasgo do riso que nos libertou
do paraíso e da perfeição
Pouso na mesinha do comboio
a máquina fotográfica
a primeira caneta que o meu pai me deu
(ou que lhe roubei, e ele sorriu)
o pequeno desenho feito à mão
que alguém me ofereceu
E acredito que se me cruzar comigo
fotografando as ruas desta cidade antiga
talvez pense "eu conheço esta cara"
e lhe sorria, e isso chegue.


(Com um abraço para a Patrícia, claro.)

segunda-feira, 18 de março de 2019

Auto-retratos

Vieira da Silva (autorretrato, 1932) e uma tonta. 




Que mais poderia eu fazer numa exposição sobre o retrato português que não fingir que também sei jogar este jogo? Sim, podia calar-me, mas por mais adepta que seja do silêncio, vamos ser francos: este dia serviu muito para me lembrar que calar-me não é opção, que ainda não me rendi. Ainda agora reentrei nos labirintos de uma criação que não tenha medo da própria voz; só agora começo a descortinar um caminho em que talvez seja possível equilibrar a minha tendência para ensimesmar (sempre a autobiografia), com o recém-descoberto gosto de pegar naquilo que, no mundo, me deixa perplexa, e tentar escavar até ao osso. Joguemos, então.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Identidade (III)

"O estereótipo anestesia a nossa percepção, mas não de um modo frio e desapaixonado. Pelo contrário: quase nada nos produz mais gozo e inflamação do que repetir estereótipos. Reproduzimo-los como se afirmássemos o mais íntimo, o mais profundo ou o mais autêntico do nosso ser. Eles emocionam-nos, inflamam-nos, levam-nos às lágrimas. Há uma verdadeira paixão da repetição, da confirmação, da mimesis, da adesão. É o gozo do reconhecimento e da identidade."
Dar a ver, dar que pensar: contra o domínio do automático | Amador Fernández-Savater (via Bicho Ruim)

Uma nota para mim mesma, para não me levar demasiado a sério nisto, ou nisto.

Identidade (II)

"Os códigos nem sempre são conscientes, mas funcionam através de nós: somos vistos, pensados e actuados por eles. Eles implementam-se automaticamente onde não há um trabalho de elaboração própria."

Dar a ver, dar que pensar: contra o domínio do automático | Amador Fernández-Savater (via Bicho Ruim)

domingo, 10 de março de 2019

Olhares



Willy Ronis | Bollène, France, 1954 (via Picture This...)

terça-feira, 5 de março de 2019

"A máscara é o mundo que nos rodeia"

© Teresa Pacheco Miranda | Público



A máscara "existe em todo o lado do mundo". Mas nesta zona do país as máscaras são descaradas, ajudam a revelar barreiras de comunicação com o Litoral, esse privilegiado. "Os caminhos vão afunilando", explica. "Para entrar em Lisboa temos cinco ou seis auto-estradas, com várias faixas em cada uma. E depois os caminhos vão estreitando, estreitando, estreitando até que aqui chegamos. Aqui há alcatrão desde que se fizeram as barragens. Antes havia caminhos de terra batida para burros."

Carlos Ferreira, guardião das máscaras de Sendim: "A máscara é o mundo que nos rodeia" (Público | 05.03.2019)

domingo, 3 de março de 2019

Ariadne



Esboços (2018)

Identidade

2018


Sinto um certo desconforto ao olhar para estas imagens, porque ao mesmo tempo que são mais do mesmo (a minha antiga e persistente incapacidade de me desdobrar), também não sei até que ponto ainda me reconheço nelas - não sei, na verdade, se me reconheci nelas sequer no momento em que as tirei. Provavelmente sim, e distorço a minha memória dessa noite à luz desta espécie de desfoque, de indefinição, em que me sinto hoje. (E como não sei caminhar a direito, procuro um foco através das minhas máscaras.)

domingo, 3 de fevereiro de 2019

à espera

Fala-se muito nos católicos, mas a ideia de que o corpo é a pior parte de nós, suja e inferior, é transversal, com mais ou menos nuances, a boa parte das religiões. São todas cegas, quando não vêem que o maior mal do corpo não é o vício, o excesso, a tendência para nos perdermos por ele, mas a sua fragilidade de casca de ovo: o facto absurdo e inevitável de que o veículo do nosso milagre e da nossa alegria se pode desfazer com um sopro.
Neste momento aguardamos um diagnóstico nos diga se escapamos à palavra de seis letras que é uma das maldições da família, reunidos à volta de alguém que ainda me é mais querido do que era (e era tanto!) quem esteve na origem da melhor coisa que já fiz, em termos académicos. Foi um trabalho para Bioética, chamado "Esperança e Realismo em Doenças Terminais", e chorei quando acabei de o escrever. Tenho dado por mim a rondá-lo, mas sem coragem de o reler, não sei à procura de quê, e a pensar que a vida nos devia deixar pôr uma redoma à volta de certas pessoas. Entretanto esperamos, e penso que há esperas a que nunca nos habituamos, por mais vezes que sejam repetidas.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Olhares


Artur Pastor (Série “De volta à cidade de Lisboa”. Alfama, décadas de 50/70), visto aqui.

Olhares


George Shiras III, National Geographic, July 1906

Mesmo na ruína




Não é a primeira vez que o digo, mas repito: o que me atrai não é um voyeurismo das ruínas; são os vestígios de vida, a luz sempre incomparável destes lugares, e a ideia de achar tesouros onde outros talvez só vejam ruínas e lixo; neste sentido são também uma forma de auto-retrato, porque são efabulações, obstinação em ver (criar?) mais do que talvez lá esteja realmente, e em ser agente dessa criação. E são pequenas epifanias pessoais, momentos de alívio e triunfo silencioso mas radiante, em cada porta finalmente aberta, cada nova sala descoberta depois de um lanço de escadas podre, em cada imagem que me prova que o fio de significado ainda não se quebrou, e que é possível segui-lo mesmo pelo meio da ruína.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Insónias e rosas

Insónias e rosas

Mary Oliver (1935-2019)

Every year
the lilies
are so perfect
I can hardly believe

their lapped light crowding
the black,
mid-summer ponds.
Nobody could count all of them --

the muskrats swimming
among the pads and the grasses
can reach out
their muscular arms and touch

only so many, they are that
rife and wild.
But what in this world
is perfect?

I bend closer and see
how this one is clearly lopsided --
and that one wears an orange blight --
and this one is a glossy cheek

half nibbled away --
and that one is a slumped purse
full of its own
unstoppable decay.

Still, what I want in my life
is to be willing
to be dazzled -
to cast aside the weight of facts

and maybe even
to float a little
above this difficult world.
I want to believe I am looking

into the white fire of a great mystery.
I want to believe that the imperfections are nothing -
that the light is everything - that it is more than the sum
of each flawed blossom rising and fading. And I do.

The Ponds (itálicos meus)

Mary Oliver (1935-2019)


Look, the trees
are turning
their own bodies
into pillars

of light,
are giving off the rich
fragrance of cinnamon
and fulfillment,

the long tapers
of cattails
are bursting and floating away over
the blue shoulders

of the ponds,
and every pond,
no matter what its
name is, is

nameless now.
Every year
everything
I have ever learned

in my lifetime
leads back to this: the fires
and the black river of loss
whose other side

is salvation,
whose meaning
none of us will ever know.
To live in this world

you must be able
to do three things:
to love what is mortal;
to hold it

against your bones knowing
your own life depends on it;
and, when the time comes to let it
go,
to let it go.

In Blackwater Woods

Mary Oliver (1935-2019)

Ordinarily, I go to the woods alone, with not a single
friend, for they are all smilers and talkers and therefore
unsuitable.

I don’t really want to be witnessed talking to the catbirds
or hugging the old black oak tree. I have my way of
praying, as you no doubt have yours.

Besides, when I am alone I can become invisible. I can sit
on the top of a dune as motionless as an uprise of weeds,
until the foxes run by unconcerned. I can hear the almost
unhearable sound of the roses singing.

If you have ever gone to the woods with me, I must love
you very much.

How I go to the woods