sexta-feira, 11 de julho de 2025

Linguagem

Vejo a poesia não enquanto exercício de linguagem, mas como exercício de transfiguração; é isso que permite usar a linguagem para falar acerca daquilo que a antecede ou ultrapassa. 
É nesse sentido que me fixo na "concentração poética", que associo naturalmente à economia de meios e à depuração quase até à palavra única. Que poesia posso escrever, quando não consigo imaginar descrição mais justa para experiência da cidade, ou do mar, ou do fogo, que dizer "a cidade", "o mar", "o fogo", e deixar que ecoem no silêncio e aí façam o seu trabalho evocativo, sem a carga inútil da interpretação? Talvez possa substituir "cidade" por "biblioteca concreta da humanidade", ou "poesia" por "catedral", mas depois disso tudo parece um excesso; e não sei se isso vem da minha afinidade com o mundo pré-palavra, ou simplesmente da minha distância natural em relação aos mecanismos da linguagem (leia-se: falta de controlo técnico sobre ela, leia-se, de talento). Porque gosto tanto de poemas longos e descritivos, nos quais, quando são bons e são dos outros, não reconheço nenhuma falta ou excesso.
 
A poesia só é tradução justa da experiência do sagrado (ou da beleza / desassossego / espanto / minúcias da experiência / de um medo / do que for), quando no seu centro está a imagem poética: uma experiência que está antes, ou para além, da linguagem, mas que despoleta a vontade da palavra, como forma de iluminação e repercussão, e de manutenção do acontecimento para lá do seu tempo. E não tenho grande fé num domínio técnico da linguagem que não tenha raízes na imersão total, de uma fidelidade obcecada, nessas imagens; numa vontade teimosa e inflexível de lhes ser absolutamente fiel, de lhes encontrar a palavra justíssima. 
 
O que não é uma fidelidade à linguagem, mas a um mundo, e acho que era aqui que queria chegar. Mesmo o "escrever bem" e a sua autoridade, em que insiste Agustina neste mítico debate, é antes de mais uma obstinação em entrar pelo mundo dentro, em "entrar no coração das pessoas e beber-lhes o sangue." Sem talento e domínio técnico tudo isto não passa de lirismo estéril, mas é igualmente estéril a tentativa de fazer passar o domínio das ferramentas por princípio suficiente para qualquer esforço que tenha a pretensão de transcender o mero exercício de habilidades. (E está à vontade quem quiser ver aqui uma tentativa de menorizar a técnica, porque a mim me falta, e não a minha tentativa de me convencer a voltar ao silêncio.) 
Penso em Bernard, o escritor em As Ondas, gregário, charmoso, fluente, e obcecado em encontrar frases de efeito e em sacar uma boa história de tudo; Woolf nega-lhe qualquer relevância artística, e apresenta-o como um tolo, cuja escrita nunca deixa de estar refém de uma falha qualquer, para a qual não tem instrumentos de compreenão e resolução. Por contraste, o quadro em que a pintora Lily Briscoe trabalha ao longo do Rumo Ao Farol, é observado pelas outras personagens com aquela curiosidade distraída que se dedica aos excêntricos calados e sem génio; e Lily luta durante todo o livro com a insuficiência da sua linguagem. Mas insiste, teimosa na fidelidade à sua visão. E só a ela Woolf concede, na apoteose final, a concretização daquilo a que se propôs. É importante sublinhar que mesmo aí, Lily nunca é apresentada como mais que uma pintora esforçada e talvez sem talento excepcional; mas é ela que triunfa, e o livro deixa, inúteis e caídas no chão, as tentativas de Mr. Ramsay e do seu discípulo Charles Tansley, filósofos geniais, de dobrar o mundo aos seus sistemas. Falta dizer que Rumo Ao Farol é a única obra de Woolf em que auto-biografia é assumida, e que (embora ela tenha transformado Lily em pintora, porque o era a sua própria irmã, Vanessa Bell) Briscoe é o avatar mais reconhecível de Woolf em toda a sua obra. E não consta que Woolf seja conhecida pela sua fraca escrita.
Estas considerações acerca do lugar justo para ponto de partida do trabalho artístico, e da aceitação dos limites desse esforço na transfiguração do impulso que lhe dá origem, estão muito longe do tipo de bazófia acerca de um pretenso domínio ou até propriedade da linguagem, que ultimamente tenho visto em todo o lado na boca de escritores, e que estes parecem considerar como prova de direito natural sobre a literatura, justificação mais que suficiente de tudo o que produzam. 
 
E a minha obsessão com uma linguagem que se possa depurar até à palavra única ou ao silêncio — critério que me imponho e em que falho constantemente, e que não imponho a mais ninguém? Posso vê-la, antes, como uma confiança absurda na capacidade de transfiguração da linguagem, que, no seu mais potente, conseguiria concentrar num só ponto o mundo inteiro?

A ironia é que que valido o meu próprio argumento, porque quanto mais discorro, mais longe fico do que quero dizer. Reduzo isto a dois pontos.
O primeiro são as dores normais de uma Lily Briscoe, que admite que nas mãos de um talento menor todas as palavras estão a mais, porque não são as certas. A depuração não funciona aí, nem é bom que funcione, como uma grande teoria artística, mas como a ferramenta possível para o trabalho de exigência inflexível e de corte que ajude a melhorar – ou a reconduzir, no fim, ao silêncio devido.
O segundo tem que ver com as razões pelas quais os escritores que dizem que "a sua casa sempre foi a linguagem", me irritam tanto como livros de estilo e aulas de escrita criativa (lembro-me muitas vezes do desabafo de Robert Harrison, numa entrevista em que exclamou "por amor de Deus, parem de tentar ensinar os alunos universitários de Letras a escrever bem! Ensinem-nos a ler! A ler!"). Concluo que o meu problema não é "verborreia vs. economia formal e estética". É que, por um lado, esse argumento da "casa" é usado para forçar uma legitimação à priori do que se escreve, e que se escusa à prova final e justa, que seria o reconhecimento do valor estético, da fidelidade à experiência originante, e da autoridade, imediatamente reconhecível, do "escrever bem". Por outro, é muitas vezes uma desculpa para a auto-indulgência dos excessos interpretativos e da palavra bem-posta e desnecessariamente complexa (na pseudo-filosofia contemporânea do tipo Judith Butler, a maior con artist intelectual dos tempos de hoje), ou desnecessariamente obscura (como em alguma poesia portuguesa contemporânea, aquela que não é capaz de sair das derivações pomposas de Al Berto e Herberto Hélder, e desdenha da universalidade demasiado acessível de Sophia, ou da inocência às vezes um pouco adolescente de Tolentino Mendonça).
 
Um poema pode ser tão justo com dezanove páginas como com sete sílabas, desde que todas elas sejam postas ao serviço da imagem poética que levou à conflagração; desde que todas elas sirvam para despoletar, no esforço poético e no leitor, a conflagração: o momento da transfiguração e da eficácia da palavra, em que nos é dado a ver aquilo para que ela aponta. A poesia é eficaz quando é capaz de transformar a linguagem num véu que rompe em chamas e por momentos deixa ver o que se esconde, antes de o voltarmos a ver intacto e opaco.

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