sexta-feira, 11 de julho de 2025

Catedrais

E se parecer que escrevo melhor sobre escrita e poesia do que escrevo poesia ou outra coisa qualquer, não é de estranhar. Subscrevo a tese que chama à crítica e teoria literárias a vingança dos maus escritores.
 
Se quiser ser menos sardónica, mas mais sincera também (porque a auto-ironia raiada de crueldade para consigo mesmo é muitas vezes um seguro; neste caso para garantir que, se a escrita falhar, se possa dizer "não achavam mesmo que eu me estava a levar a sério, pois não?" e assim salvar a dignidade), então lembro-me que não comecei a escrever acerca da escrita com a pretensão de me tornar escritora, mas como uma leitora obcecada. Se não me consigo calar com isto, é porque os livros me continuam a deixar perplexa e sob feitiço. E se a experiência da leitura me leva a interrogar os mecanismos da escrita, isso não começou com o objectivo de procurar pistas que me ajudassem a ser criativa e a ganhar acesso ao mundo do uso hábil da linguagem; partiu da curiosidade acerca do que o exercício da escrita deflagra no leitor (e no mundo); que me transforma numa compiladora, em busca de uma espécie de enciclopédia sobre a escrita, como tentativa de compreender os mecanismos do seu poder sobre mim, e da sua eficácia iluminante em relação à experiência humana.
 
Parto então, na passagem da leitura para a escrita, do ponto de vista da testemunha, não tão diferente da que tenho enquanto habitante desse mundo pré-palavra de que tenho falado. Talvez por isso Woolf e Borges sejam os meus escritores favoritos: Woolf ilumina a experiência intuitiva do mundo como ninguém, e Borges é o leitor mais apaixonado da história da literatura. Divido-me entre esses dois mundos, o da experiência intuitiva e pré-palavra que me é natural, e o da linguagem que me escapa e me fascina; mas sempre a partir da minha vocação, que não é de criação, mas de testemunho: a sede de ver, que é composta por uma metade de orgulho e egocentrismo de fazer as coisas passar por mim, e por outra metade de silêncio e desprendimento, que permite que as coisas me atravessem sem interrupção nem deturpação. Talvez resida aqui a minha obsessão com a depuração da linguagem: aventuro-me pela escrita porque a perplexidade de leitora e observadora leva a essa deflagração; mas alongar-me por uma ferramenta que põe em causa a minha vocação de silêncio deixa-me entre a sensação de traição e de perigo de vida.
 
Seja como for, imagino que a experiência humana pode ser dividida em dois, para iluminar estas reflexões. De um lado as experiências intuitivas do sagrado, da beleza, de um sentido que se dá de forma pura, de comunhão com alguma coisa, e que imaginamos ligadas a um mundo inicial, anterior e independente do edifício monumental dos esforços de explicação (que tanto cremos iluminante, como desconfiamos que nos afasta do essencial); muitas vezes materializamos o desejo de acesso permanente e estável a esse mundo numa nostalgia religiosa, cultural ou cívica, por exemplo na efabulação da Grécia original, ou em intenções de regresso ao Cristianismo primitivo). Por outro lado, o mundo desse edifício monumental, da curiosidade e do fascínio, da ciência, do reconhecimento e busca dos milagres e da sua explicação. É o mundo da cidade, das relações e convulsões, do negócio e da palavra, e é alimentado pelo desassossego, como dele fala Okakura no Livro do Chá.
 
Talvez a poesia seja o lugar onde os dois mundos se encontram; onde a cidade aprende o silêncio e a depuração, e pode passar do desassossego enquanto excesso intepretativo para o desassossego enquanto iluminação; e onde o mundo inicial se encontra com a linguagem, que lhe dá a capacidade de se manter visível para lá da sua natureza, que é a de só se deixar ver por clarões súbitos e raros. 
E escolho para seu símbolo, a meio caminho entre a cidade e o silêncio, a catedral.

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