sábado, 20 de agosto de 2022

Longings

"A hundred archaic longings stupefied me" escrevia a Susan Sontag. A hundred archaic longings are what keeps me alive, I say.

domingo, 14 de agosto de 2022

Louro, Estrela

Esta noite acordei de um salto, como se acorda dos piores pesadelos. Sonhei que numa acção de reflorestação um bombeiro e eu plantávamos uma árvore muito pequenina, pouco mais que um caule, e que quando a regámos ela imediatamente pegou fogo e ficou em cinzas, antes que tivéssemos tempo para reagir. E é isto, este país é isto.

sábado, 13 de agosto de 2022

Os anos

Estes são os anos do Labirinto
e do Minotauro
de aprender na sua sombra
o trabalho e a escrita.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

E depois recomeçar

"Sei Shonagon does not classify, she enumerates and then starts again."

Brief Notes On The Art And Manner Of Arranging One's Books, Georges Perec


É uma das minhas estratégias de sobrevivência mais essenciais, aqui descrita com uma elegância que eu nunca conseguiria, perfeitamente borgiana (borgesiana?...). Enumerar os lugares que amo e depois recomeçar. Tocar todos os objectos que fazem desta casa um abrigo e depois recomeçar. Tirar a mesma fotografia uma vez e outra e outra e outra e outra, "mas tu não fotografaste já isso?" e depois recomeçar. Ler as mesmas passagens dos  mesmos livros que me consolam e depois recomeçar. Passar pela mesma ruela, entrar sempre na mesma livraria, parar sempre na mesma montra, e depois recomeçar. Há nas pessoas que nomeiam e reiteram, se forem todas como eu, sempre um ligeiro toque de febre, de pânico de que as coisas se desfaçam se não as convocarmos incessantemente. Não é verdade: há sempre um ligeiro toque de febre, de pânico de que nos desfaçamos se não convocarmos incessantemente as coisas que nos sustentam. Não foi por nada que Calvino previu também a cidade de Thekla: "If you ask "Why is Thekla's construction taking such a long time?" the inhabitants continue hoisting sacks, lowering leaded strings, moving long brushes up and down, as they answer "So that its destruction cannot begin." And if asked whether they fear that, once the scaffoldings are removed, the city may begin to crumble and fall to pieces, they add hastily, in a whisper, "Not only the city."

Cidade

A cidade como uma forma de efabulação análoga à dos auto-retratos, enquanto cenário que se presta ao "como se alguém assistisse", propiciado pelo acto de caminhar. Escolhemos como nos apresentamos e como nos vemos, quando escolhemos por que ruas iremos, os lugares onde paramos, os que ignoramos, o que trazemos para casa num bloco de notas ou de desenho ou na máquina fotográfica ou na cabeça. E os edifícios, as árvores, as pedras da calçada, são geralmente testemunhas de uma infinita boa-vontade, e ouvintes de primeira água.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Monja apócrifa

"Mas ainda gostas da Bíblia, da Liturgia das Horas, apóstata confessa que és?" Sim. Foram a minha primeira introdução ao poder consolador da grande literatura. E o Antigo Testamento remete-me sempre para Borges, o que lhe fica bem.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

O meu nome é Hadewijch

Haverá lugar mais apropriado para os rasgos do meu verniz vermelho, quando raspo sem querer nas páginas, que nos Contos do Mal Errante?

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Monja apócrifa / o meu nome é Hadewijch

"E Escarlate, sempre como um móbil, camada interna protegida por um segredo, ou um silêncio."

Contos do Mal Errante
, Maria Gabriela Llansol

Silêncio

Não consigo parar de pensar naquele jantar no sopé da montanha, na permanência daquele silêncio; passo cada hora de cada dia da semana a sonhar com o regresso àquele lugar, àquela hora. A memória, e o seu papel na experiência do presente, é um dos meus temas, e a Cidade outro — mas o silêncio. É o apelo antigo e inicial do meu coração de monja. Monja que só sabe pensar com os pés em andamento, monja que ama a Cidade culta dos museus e livrarias e dúbia dos portos e das caves de Jazz do Margarit e do Vasco Graça Moura, monja de libido apócrifa e a sensualidade como um modo de expressão absolutamente necessário, monja apócrifa e apóstata, mas monja. De golpe luminoso de êxtase na pele, e silêncio no coração.

Silêncio

Apanhámos uma trovoada de Verão na ida, e quando chegámos ao ponto de acesso para a parte mais alta da montanha ainda chuviscava, e o tempo estava demasiado incerto para arriscarmos a subida. Acabámos por jantar no parque de estacionamento, entre caravanistas e outras pessoas com as mesas e cadeiras de campismo montadas ao lado do carro, todos nós adiando o inevitável regresso à cidade. Ele sentou-se na cadeira desmontável; eu como sempre prefiro o chão (em tantas coisas), e estendi a minha manta no alcatrão. Encostei-me às cordas que passam pelos pilaretes de cimento, delimitando a zona de estacionamento, e fiquei de frente para a encosta muito verde da montanha, aquele prado bonito que antecede a floresta de pinheiros muito altos e direitos que sobe até ao planalto de quase-tundra no topo.
Foi a primeira vez em dois meses que vimos o termómetro do carro descer abaixo dos trinta - foi só preciso esperar pelas oito da noite a mil e oitocentos metros de altitude, depois uma chuvada. Ainda se sentia o fresco na pele, ouviam-se os badalos das vacas, que ali surgem dos recantos e encostas mais inacreditáveis, quase como se fossem cabras, e o céu abriu-se um pouco, de um tecto muito baixo e cor de chumbo para nuvens altas, iluminadas pelo pôr-do-sol. E chegou então aquele género de silêncio que aprendi no Pergulho, e que amo: aquele que pode ser atravessado por um carro ou um cão na noite, pelas conversas em tom baixo e quase reverencial dos poucos que ali permaneciam, ou pelos badalos das vacas, sem jamais ser perturbado. Um silêncio que é atravessado mas não interrompido.