Finalmente encontrei a minha possibilidade de escrita, numa era em que escrever é absolutamente inútil. (Sempre o foi, eu sei, mas também é verdade que os tempos não são todos iguais. De qualquer modo, "não é grave", diria Agustina, e teria razão.)
terça-feira, 16 de março de 2021
Arestas
A minha personalidade é composta, em parte significativa, por pares de contrários, cujos termos me são igualmente necessários. Ao contrário do que se poderia imaginar, os problemas não chegam pela difícil convivência dos opostos, mas quando, por algum motivo, me convenço de que tenho a obrigação de os aplanar, ou de escolher um dos lados. Ainda está para chegar o dia em que a média do que quer que seja me traga alegria, e tentá-lo é uma quadratura do círculo muito mais esgotante e estéril que a vivência quotidiana com desejos, pulsões ou medos que puxam para lados opostos. Até porque renegar um dos termos, em vez de trazer paz de espírito, traz também a destruição do outro termo - e a minha.
Obviamente os lados cruzam-se, conversam, contagiam-se, e é nessa intersecção que estão os frutos. Mas para que isso aconteça preciso de olhar ao espelho e ver as arestas límpidas e definidas de cada lado, teimosas contra a massa amorfa da mediania, e dos terrenos aplanados pelas tentações do sossego e da compreensão dos outros.
Kitsch português / margem sul
A minha quarentena é passada num subúrbio onde as árvores são chatices indesejáveis, os prédios parecem construídos de propósito para minimizar a entrada de luz nas casas, há dezenas de máscaras descartáveis no chão nas paragens de autocarros, e a relva dos poucos jardins que existem está repleta de restos do Macdonald's.
Sonho dia e noite com o mar. A rede de estradas secundárias e atalhos entre a Lagoa de Albufeira e o Cabo Espichel está repleta de descampados que se tornam bonitos com o sol glorioso de um fim de tarde de Verão e com a promessa de mar, e de casas tão feias que se tornam tristes. Há uma que tem um grande quintal numa colina, totalmente semeado de sanitas e bidés velhos, às dezenas. Lembro-me, por exemplo, das fotografias de casas portuguesas nos subúrbios e na costa, da saudosa Luísa Cortesão, e penso que amamos o feio (e possivelmente ofendemo-nos com quem o reconhece por esse nome), porque não há, nessa extensa mistura de subúrbios e descampados com lixo que caracteriza parte significativa deste país, muito mais que se possa amar. Há o nosso mar imenso e o seu céu e sol, certo. Mas o lixo e a feiura triste têm uma maneira perniciosa de se espalhar, e no fim do dia deixaram a Sophia fora do cânone, e há dias em que, aqui, não existe mais que isto.
Há sempre uma altura, no cansaço do Inverno, em que sou tomada por uma espécie de loucura que me faz duvidar da existência continuada do sol e da possibilidade do Verão. Há dois anos a lucidez já teria voltado, com os primeiros dias de sol, as primeiras árvores floridas numa das minhas serras, e a primeira vez em que antecipo, ainda com as mantas todas na cama, o primeiro mergulho naquela praia inicial, mais a norte. Este ano a ilusão permanece para lá do seu tempo, e preciso de um esforço consciente para que não se misture com o cansaço deste dia 440 de 2020. Tenho medo: quanto tempo até os subúrbios me engolirem de vez, e eu perder as minhas rotas? Até perder a praia atlântica que é para mim a primeira; a outra, num enseada escondida, onde o pôr do sol é mais bonito; a da minha infância, com relva e eucaliptos para as sestas; certas piscinas de rocha protegidas da rebentação; o lugar exacto no areal para conversas até às tantas com um termo de chá, sob uma chuva de estrelas cadentes.
Todas as noites atravesso em sonhos a paisagem desolada, em busca desse mar que é uma necessidade e uma obsessão. Por agora ainda lá chego, a essas praias secretas que nomeio em silêncio, para que o lixo não as invada, e ainda sou capaz de celebrar os descampados, mesmo com bidés, pelos caminhos que me conduzem até ao mar, pela luz nas ervas numa tarde de Verão. Desde que a sede não nos abandone e os caminhos não nos expulsem, escrevi há uns anos. Rezo aos meus deuses (Sophia, Ariadne de Naxos, Severa) para que assim continue.
Dá-lhes, Scorsese
«Curating isn’t undemocratic or “elitist,” a term that is now used so often that it’s become meaningless. It’s an act of generosity—you’re sharing what you love and what has inspired you. (The best streaming platforms, such as the Criterion Channel and MUBI and traditional outlets such as TCM, are based on curating—they’re actually curated.) Algorithms, by definition, are based on calculations that treat the viewer as a consumer and nothing else.
The choices made by distributors such as Amos Vogel at Grove Press back in the Sixties were not just acts of generosity but, quite often, of bravery.»
Il Maestro, Martin Scorsese
domingo, 7 de março de 2021
Presciência & intenção
Podia passar dias e dias a analisar as intenções de Jean-Luc Godard em La Chinoise, a tentar perceber quanto daquela sátira foi intencional, e quanto é fruto da minha leitura contemporânea e anacrónica, informada pelo conhecimento que hoje temos das atrocidades dos regimes comunistas russo e chinês, e da esterilidade de movimentos como o Maio de 68.
Mas interessa-me mais a presciência de algumas cenas, como aquela em que a personagem de Léaud elimina escritores e dramaturgos um a um, sem piedade, até não sobrar nada a não ser Brecht. Ele que se cuide, porque as redes sociais que papagueiam chavões de extrema-esquerda cujas implicações estão longe de perceber (e que não têm interesse nenhum em viver na pele), ainda só não apagaram Brecht porque não sabem que ele existe (é dar-lhes tempo, não tenho dúvidas que lá chegarão e que as suas razões para o eliminar serão magníficas). Perante cenas como esta, ou passagens como aquela, n'O Homem Sem Qualidades, em que Ulrich finalmente desiste de tentar chegar a algum lado depois de ouvir falar do "génio" de um cavalo de corrida, pergunto-me se isso a que chamamos presciência não será simplesmente o resultado de fazer aquilo de que hoje poucos parecem capazes: perseguir uma ideologia, um movimento, uma ideia até às suas últimas consequências, e falar com honestidade acerca do lugar onde isso nos leva.
Enquanto Musil o faz de forma irónica, crítica e desencantada, Godard está engajado. E eu acho que as consequências últimas daquilo que ele defende são inaceitáveis, mas não tenho a certeza que a postura acrítica e auto-congratulatória que o filme (voluntariamente ou não) mostra e profetiza, nas suas personagens, seja mais inócua. E acho que é isso que me perturba tanto neste filme: dar por mim a quase respeitar mais um realizador que defende o que tenho como inaceitável, porque o faz em consciência, que toda essa multidão passada e presente de "pessoas que aprenderam a falar com ovelhas", que defendem os mesmos princípios que ele, mas sem um pingo de auto-consciência, nem a coragem ou capacidade de levar um raciocínio até ao fim. O que é um raciocínio perigoso da minha parte, se o levar até ao fim. Eu sei, acreditem.
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