Ir ao Brown's, em plena Baixa, tem mais de wishful thinking que outra coisa qualquer: eu gosto muito da decoração interior, que é das minhas favoritas em Lisboa, e me dá vontade de escolher uma mesa de canto e ficar ali algum tempo perdida num livro, com um chá e um doce; na teoria, sinto-me ali muito bem. Só que a música geralmente está tão alta que tenho vontade de nem entrar, e o melhor que se pode esperar dos empregados é que, num dia bom, sejam só antipáticos. Quando o café foi transformado em restaurante dei o caso como perdido, uma dica de que não valia a pena continuar a tentar. Mas esta semana precisava de fazer tempo antes de um compromisso, estava por ali, e tinha comigo um livro que estava mesmo a pedir um chá e uma mesa de canto; foi a meio da tarde, o Brown's estava vazio, e a música estava um pouco menos alta que o costume (ou seja, seria possível ignorá-la, com os meus ascultadores no máximo); arrisquei e não foi uma má aposta. O livro em questão é "O Homem Sem Qualidades", numa tradução inglesa da Picador (que me custou €22, volume completo, por contraste com os €30 euros pedidos por cada um dos três volumes da edição portuguesa, mas enfim, isso é toda uma outra história). Será a minha grande-leitura-de-Outono.
Costumo ter dois picos de leitura durante o ano: uma lista de leitura para as férias do Verão, quando a cabeça mais livre me permite despachar mais livros decentes num par de semanas que em vários meses, e uma grande-leitura-de-Outono, quando escolho um clássico longo, que leio algures entre Outubro e Dezembro, dependendo da disponibilidade horária e mental. Foi assim que li o "Guerra em Paz", e o "Ulysses", por exemplo, e tenho um carinho especial por esses momentos de leitura, que geralmente acontecem em serões e fins de semana de chuva e ronha, com um exagero de mantas e litros de chá à mistura. Gosto muito dessa sensação de "cair" para dentro de um livro e esquecer-me de que existe mundo lá fora, e acho que isso é mais fácil quando chega o tempo frio, e a casa parece mais apetecível e acolhedora; sinto-me sempre feliz quando me lembro dessas leituras passadas, desde a companhia que a série, mais leve, do "Harry Potter" me fez num momento de maior solidão, há muitos anos, até ao gozo que tive em cair para dentro do "Guerra e Paz", de tal modo que apagava a luz para dormir, mas acabava sempre por ir buscar o tablet recém-adquirido para, mesmo no escuro, poder ler "só mais um bocadinho". Este ano, devido à carga de trabalho acrescida com o mestrado, não consegui ler durante o Verão, e por isso acho que este ritual do tempo frio ainda vai saber melhor.
Ainda estou muito no começo do "Homem Sem Qualidades", mas é um daqueles casos em que ao fim de uma dúzia de páginas já sabia que ia gostar muito deste livro. Para já estou fascinada com as descrições do "ar dos tempos", da sociedade, dos indivíduos: são ricas, perspicazes e de uma ironia fina. Mas o que mais surpreende não é só o facto de haver ali tanto que ainda hoje se aplica, tendo em conta que o livro é muito focado na descrição e crítica de uma época e contexto específicos (os últimos anos do Império Austro-Húngaro), e que foi escrito ainda antes da Segunda Guerra Mundial; mais que isso, há fenómenos, características, modos de pensar, que Musil pareceu perceber muito antes de eles se materializarem completamente, de tal modo que certas passagens, lidas hoje, parecem quase prescientes.
Lisboa | Outubro 2017
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