sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Europa XXI

«the people I see changing their attitude toward Lenin, Europe, and so on expose their nonindividuality. This change is neither their own creation nor their own invention, not caprice or surprise or thought or madness; it has no poetry; it is nothing but a very prosaic adjustment to the changing spirit of History. That is why they don't even notice it; in the final analysis, they always stay the same: always in the right, always thinking what, in their milieu, a person is supposed to think; they change not in order to draw closer to some essential self but in order to merge with everyone else; changing lets them stay unchanged.
Another way of expressing it: they change their mind in accordance with the invisible tribunal that is also changing its mind; their change is thus simply a bet on what the tribunal will proclaim to be the truth tomorrow.»


Milan Kundera, "Os caminhos no nevoeiro" em Os Tratamentos Traídos

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Tradutores

«À necessidade de usar uma palavra diferente em lugar da mais evidente, da mais simples, da mais neutra (estar - mergulhar; passar - fossar) poderia chamar-se reflexo de sinonimização — reflexo de quase todos os tradutores. Ter uma grande reserva de sinónimos é uma coisa que faz parte do virtuosismo do «belo estilo»; se no mesmo parágrafo do texto original houver duas vezes a palavra «tristeza», o tradutor, indignado com a repetição (considerada um atentado contra a elegância estilística obrigatória), sentir-se-á tentado, da segunda vez, a traduzir por «melancolia». Mas há mais: esta necessidade de sinonimizar incrustou-se tão profundamente na alma do tradutor que ele escolherá acto contínuo um sinónimo: traduzirá «melancolia» se no texto original houver «tristeza», traduzirá «tristeza» onde houver «melancolia».
(...)
A autoridade suprema, para um tradutor, deveria ser
o estilo pessoal do autor. Mas a maior parte dos tradutores obedecem a uma outra autoridade: à do estilo comum do «bom francês» (do bom alemão, do bom inglês, etc.), a saber do francês (do alemão, etc.) como é aprendido no liceu. O tradutor considera-se como o embaixador dessa autoridade junto do autor estrangeiro. Tal é o erro: todo o autor de certo valor transgride o «belo estilo» e é nessa transgressão que se encontra a originalidade (e, portanto, a razão de ser) da sua arte. O primeiro esforço do tradutor deveria ser a compreensão desta transgressão.»


Milan Kundera, "Uma Frase" em Os Testamentos Traídos

Europa XXI

«Nos Versículos Satânicos é portanto a arte do romance enquanto tal a incriminada. É por isso que, em toda esta triste história, o mais triste não é o veredicto de Khomeiny (que resulta de uma lógica atroz mas coerente) mas a incapacidade da Europa para defender e explicar (explicar pacientemente a si própria e aos outros) a mais europeia das artes que é a arte do romance, por outras palavras, para explicar e defender a sua própria cultura. Os "filhos do romance" abandonaram a arte que os formou. A Europa, a "sociedade do romance", abandonou-se a si própria.
Não me admira que teólogos da Sorbonne, a polícia ideológica desse século XVI que tantas fogueiras acendeu, tenham feito a vida dura a Rabelais, obrigando-o a fugir e a esconder-se. O que me parece muito mais espantoso e digno de admiração é a protecção que lhe proporcionaram homens poderosos do seu tempo, o cardeal Du Bellay, por exemplo, o cardeal Odet, e sobretudo Francisco I, rei de França. Terão querido defender princípios? A liberdade de expressão? Os direitos do homem? O motivo da sua atitude era melhor; amavam a literatura e as artes.
Não vejo nenhum cardeal Du Bellay, nenhum Francisco I na Europa de hoje.»


Milan Kundera, "No dia em que Panúrgio deixar de fazer rir" em Testamentos Traídos

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Em casa

«para um romancista, para um compositor, afastar-se do lugar ao qual a sua imaginação, as suas obsessões, e, portanto, os seus temas fundamentais estão ligados poderá causar uma espécie de dilaceração. (...)
Com efeito, o começo da sua viagem através da história da música coincide pouco a pouco com o momento em que o seu país natal deixa de existir para ele; tendo compreendido que nenhum outro país o pode substituir, encontra na música a sua única pátria; não se trata de um bela maneira de dizer lírica da minha parte, é o que penso do modo mais concreto possível: a sua única pátria, o seu único lugar próprio, era a música, toda a música de todos os músicos, a história da música; foi aí que ele decidiu instalar-se, deitar raízes, habitar; foi aí que acabou por descobrir os seus únicos compatriotas, os seus únicos próximos, os seus únicos vizinhos, de Pérotin a Webern; foi com eles que travou uma longa conversa que só com a sua morte seria interrompida. Fez tudo o que pôde por aí se sentir em sua casa: deteve-se em todas as divisões, tocou todos os cantos, acariciou todos os móveis»


Milan Kundera, "Improviso em homenagem a Stravinski" em Testamentos Traídos