quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

«cette éperdue nostalgie de la perfection»

(Citação de L'Usage du monde, de Nicolas Bouvier)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Fendas

Somos nós essas fendas por onde entra uma outra cidade, e é por isso que os seus donos precisam tanto de rir tão alto, de forma tão boçal, quando passamos por eles, como se partilhassem uma piada à qual não temos direito, como se essa piada fossemos nós. Tanto medo, meu Deus, em quem só consegue gozar uma coisa se puder pôr uma cancela à entrada, tanto pânico tão mal escondido ao perceberem que não funciona.

Lisboa

Ah, minha pobre e vagamente ridícula Lisboa, que só sabes ser boa para os turistas. Não por culpa tua, mas de quem a viveu e quis de tal maneira que hoje não tem mais que circo para dar, dos burguesinhos que só sabem brincar aos intelectuais e aos alternativos em bolha fechada, e a preferiram vazia e em ruínas que viva e valorizada, se o preço disso era deixá-la acessível à ralé - que chegou, quer eles quisessem, quer não. Ah, minha pobre e vagamente ridícula Lisboa, que só consegues escapar ao circo e à pretensão nas frinchas, nas fendas, que só aí encontras uma ideia de ti mesma que talvez algum dia valesse a pena realizar.

A Biblioteca na Floresta

Na maior parte dos dias tenho preguiça de escrever, mas hoje reencontro um certo silêncio, e não escrevo porque é mais importante respeitá-lo. Além disso é por vezes necessário deixar que a vontade de escrever se acumule até que não o fazer se torne insuportável, esperar que o arco do desassossego se retese até à insustentabilidade. Tem também que ver com a minha natureza de Ent, os meus ciclos absurdamente longos, que nunca perceberam muito bem as regras do tempo e da urgência da escala humana. Eu sou uma Entwife que desapareceu, não para cultivar coisas ou para pastorear árvores, mas apenas para me esconder entre elas. E está-se aqui tão bem, deixem-me estar um pouco mais.

De nada nem de ninguém

«O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nós mesmos diz respeito outra espécie de confiança. A de que somos insubstituíveis na nossa aventura e de que ninguém a fará por nós. De que ela se fará à margem da confiança alheia.»

Herberto Helder, 1964 [em entrevista a Fernando Ribeiro de Mello, via Istmos]

Que lugar

Num dia difícil, quando vivia em Herbais (na Bélgica), Llansol diz: «Os Capuchos, uma praia, Lisboa, deviam ser do lado de Herbais», e é isto. Um Baleal, um Pergulho, um Malhadal, uma Estrela, Louro ou Lisboa que estivessem para os lados de um outro lugar. Que lugar? Pois.

De nada nem de ninguém

«Em geral um bom romancista não é contemporâneo de nada nem de ninguém» diz Agustina, sábia no meio dos tolos, ela mesma expressão maior desta verdade.

Setúbal

Há ausências que são companhia, mansas e benignas, de uma maneira que, quando eram presença, nunca foram; que eram então apenas signos de uma solidão um pouco cruel, de pesos um pouco boçais.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Classificar

«...faltava a Louis o espírito metódico de quem classifica», diz o irmão de Aloysius. Certo, mas como alguns bem sabem, classificar ou catalogar pode ser um acto de loucura.

Mester

«Um inventor de passados», diz Aníbal Fernandes acerca de Aloysius Bertrand, na introdução de Gaspar da Noite. É esse o meu mester.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Manual de escrita n.º 245

«...assim me simulei. eu acredito
mas é na técnica. nunca a inspiração
me deu fosse o que fosse. nem um grito.

feito a sanguínea, prefiro-me artesão.
escrevo e rasuro, volto a escrever, repito...»



Vasco Graça Moura, retrato em causa própria

Minha menina

"Nunca estás contente com nada, minha menina. Olha que não se pode ter tudo, minha menina. Tens que aprender a ser feliz com menos, minha menina", diz-lhe ele. Depois ela pára junto a uma árvore em flor e ele sopra e zanga-se, porque já está aborrecido.

Três

Perder um amor, perder uma amizade, perder um lugar. Assim, por ordem crescente de importância. Sobrevivi à primeira tragédia com ganhos, à segunda com perdas, à terceira

Attic / Siege

Where / what
is home
in a temporary city
that feels like exile,
half resented, half desired?
It's an attic, a nest
an astronomer's tower.
Where / what
is home
in a temporary city
that feels like
waiting out a siege?
I read it out
amongst
a lineage of guardians
a lineage of ghosts to which I belong
I walk it out
in the starry vaulted archives
of my memory
of cities and dust
amongst the stars.