Pergulho | Março 2008
sábado, 25 de novembro de 2017
A Casa Velha
Apesar de não haver voyerismo na intenção, há sempre um certo prazer de transgressão ao entrar pela primeira vez numa casa abandonada, a antecipação perante os tesouros, escondidos ao comum mortal, que posso estar prestes a descobrir e a revelar, eu própria feita arquitecta nas ruínas, trave-mestra da sua transfiguração em algo com significado novamente, por umas horas.
Esse prazer secreto, sussurrado, desvanece-se no segundo em que os pés trespassam o umbral de uma casa que seja nossa. O primeiro impacto não é o de um silêncio sagrado por se pisar o chão das raízes, não é um assombro - é apenas a desolação das paredes inúteis, das madeiras podres e do lixo profanador.
Fotografar as ruínas de uma casa, colar-me até, às suas paredes com um egocentrismo que admito, não me tem, facto, grande voyerismo. É a minha maneira de fazer memória, é a minha tentativa de dar voz às paredes feitas inúteis e silenciosas pela decadência e pelo esquecimento. Há, isso admito-o, um certo narcisismo, um prazer de me proclamar agente dessa "ressurreição de um minuto", de me fazer agente de vida, nem que seja numa ontologia de ruínas, do que já só tem existência por oposição ao que já foi e não voltará a ser. Mas sim, e para minha defesa, considero-o, acima de tudo, uma homenagem vinda talvez desta minha sede de raízes que me corre no sangue.
E no entanto, isso não atenua o sentimento de culpa, de profanação, ao fotografar a casa onde a minha mãe e os seus 9 irmãos e irmãs nasceram e viveram, que testemunhou a vida amarga e séria da minha avó, a história da minha família, pela parte do meu avô materno, por pelo menos quatro gerações. Há pouco consolo em saber que as fotografias que tirei encontram, pelo menos uma vez, o seu destinatário e a possibilidade real de fazer memória e honrar uma história e quem a viveu e vive, inclusivamente eu.
Dito isto, é impossível sacudir a sensação de que estas imagens, mais que quaisquer outras que já tirei, ficam muito aquém do testemunho que pretendem ser, do silêncio, solenidade e carinho que gostaria de lhes imprimir. É verdade que tive muito pouco tempo, que estava acompanhada, que o medo de cair pelo soalho podre era muito, e que acima de tudo, fotografar a ruína da casa em que a minha mãe nasceu, com ela presente foi, no mínimo, difícil.
Mas o que me custou mais não foi propriamente a ruína da casa (já anunciada e adivinhada) mas a decadência e falta de amor deixada pelo último inquilino, os restos de comida, as roupas e cobertores a apodrecer como ninhos de ratos, os objectos domésticos deixados para trás como que por um fugitivo, o lixo a sair pelos cantos mais sagrados: a cozinha, coração da família numa casa demasiado exígua e vergada de trabalho para ter sala de estar, e a cantareira, nicho com o cântaro de barro com água fresca e o púcaro de alumínio amolgado, omnipresentes, acarinhados e usados até na época dos frigoríficos.
Quero esvaziá-la, a casa velha, extirpar-lhe todo aquele lixo, sacrílego pela forma inevitável e impertinente com que se anuncia, como se nos dissesse que a casa agora lhe pertence, a esse reino em que as coisas se extinguem sem memória, quando a degradação se torna banal.Custa-me tirar-lhe os últimos vestígios de vida, do quotidiano que faz permanência nos gestos fugazes e nos objectos do dia-a-dia; é como tirar-lhe, a ela e a mim, o coração, condená-la a viver mais tempo (espero que sem a porcaria apodreça um pouco mais devagar), mas naquela espécie de imortalidade que só têm as coisas desprovidas de vida. - Mas acima de tudo que ela se aguente o mais possível. Eu ainda não perdi a esperança romântica de um dia vir a ter meios para a recuperar, nem que só reste deitar as ruínas abaixo e reconstruí-la quase de raiz.
(O texto é de 2008. A Casa Velha foi recuperada por familiares o ano passado, e eu não podia estar mais grata*)
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
National Portrait Gallery
Londres | Abril 2017
Ainda em relação à National Portrait Gallery, tenho de destacar este conjunto de retratos de reis e rainhas inglesas. Gostei imenso deles, mas quanto mais olhava para os quadros mais me parecia que havia uma quantidade anormalmente grande de retratos com os olhos nitidamente tortos! Seria intencional? Havia assim tantos reis vesgos? A informação junto da obra não referia nada acerca da questão e ainda por cima visitei o museu sozinha, pelo que tive de me conter para não puxar um desconhecido pela manga só para lhe perguntar se via o mesmo que eu.
Achei muita piada a esta sobreposição de solenidade com humor, e quando cheguei a casa tentei encontrar mais informação. O site do museu tem uma página bastante completa acerca da obra, que terá sido realizada entre 1590 e 1610, por vários autores; e junta os retratos de um desses pintores num grupo chamado "The 'Crooked Eye' Group". Eu acho que há mais retratos com olhos tortos fora desse grupo, mas ainda assim deixo a explicação fornecida pelo site, onde é também possível ver os retratos em tamanho grande:
"In both images the king is depicted with slightly crooked eyes. There is no documentary evidence that he looked like this in reality. Instead, it is likely that this design was ultimately based on a forward-facing image of the king in a medieval manuscript illustration in which his eyes were depicted in this way unintentionally. King John’s eyes are also slightly crooked, possibly because the artist found it difficult to paint a face in a half-profile position."
National Portrait Gallery | Londres
Londres | Abril 2017
Desconfiava que este ia ser dos um dos meus museus favoritos em Londres e assim foi. Gosto muito de retratos e sabia que ia encontrar aqui alguns que faziam parte da minha lista; além disso gostei muito do próprio espaço, tanto pela sua decoração e organização interior, como pelo facto de ser bastante mais sossegado que outros museus da cidade. Tive pena que as fotografias de Virginia Woolf que queria muito ver estivessem numa ala em reconstrução (há algum museu em Londres que não tenha permanentemente alas em reconstrução, ou sou só mesmo eu que tenho azar?), mas tive algumas boas surpresas para recompensar, quadros que não conhecia e de que gostei muito. Saí com a sensação de que, se algum dia acabar por viver em Londres, a National Portrait Gallery vai ser um dos meus abrigos. Até lá, conto os dias para voltar, nem que seja de passagem.
segunda-feira, 13 de novembro de 2017
Ariadne
Ariadne, Alice, Rainha de Copas, Sophia, Severa. São personagens, palavras e imagens, que habitam comigo há mais de dez anos, com muita adolescência tardia, inquietação, pseudo-poesia foleira e noites sem dormir. São as minhas reconstruções e efabulações. É altura de perder a vergonha e, foleiro ou não, tentar fazer alguma coisa com isto.
Agosto 2006
Ariadne em Naxos
Ariadne ficou esquecida em Naxos
quando perdemos a crença luminosa
da nossa adolescência
Quando, como Teseu, futilmente
acreditámos ter morto o terror
de sombras do Labirinto e do Minotauro.
Fizemo-nos adultos
e o instinto inato para a tragédia
foi consumado.
quando perdemos a crença luminosa
da nossa adolescência
Quando, como Teseu, futilmente
acreditámos ter morto o terror
de sombras do Labirinto e do Minotauro.
Fizemo-nos adultos
e o instinto inato para a tragédia
foi consumado.
The holiness of empire
"What is the holiness of empire?
It is to know collapse."
The Fall of Rome: A Traveller’s Guide (excerto), Anne Carson
quinta-feira, 9 de novembro de 2017
Amor como em Casa
Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.
Manuel António Pina
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.
Manuel António Pina
O restaurante Grego da Caparica
Depois de um dia refém do sem-sentido, o nosso restaurante grego na Caparica numa noite já deserta, em que o nevoeiro torna as luzes difusas e assombra as montras de boias e toalhas. O rugir do mar e o cheiro a sal que se cola à pele lembraram-me Invernos passados no Baleal; se há muitos anos aprendi aí que a solidão não invalida a ternura, aprendo agora que ter uma Casa não tem de destruir as viagens interiores que requerem solidão. Calor, ausência, solidão, ternura, sempre me acompanharam, e a cada regresso à praia fora de época, as ondas relembram-me essa linguagem de inquietação e de dança.
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