segunda-feira, 22 de abril de 2019

quarta-feira, 17 de abril de 2019

terça-feira, 16 de abril de 2019

Nublado

Eu conheço-me apenas de vista
com a imprecisão de um reflexo
numa montra, com a perplexidade
de quem enfrenta um espelho hostil
numa noite de insónia
e mesmo nas minhas fotografias mais felizes
em que mais quero acreditar
que ainda sou eu, não sei se sou.
Estranho-me a cada amigo
que se perdeu ou que perdi
a cada traço de alegria
a que renunciei
e cada amigo que se perde
é um espelho com o qual
se quebrou uma aliança.
São névoas e cacos
a minha obsessão com a biografia
a loucura com que acredito
que efabular-me
me pode salvar do mundo
do meu medo do mundo.
Resta-me então a viagem
e a generosidade inesperada
de quem me acena do outro lado do rio
à beira do qual todos esperamos
um sinal, um vento favorável,
ou simplesmente o som da água que corre
quando já desistimos de caminhar.
Sozinha num comboio sento-me
de frente para a paisagem
até o meu rosto se fundir com o seu
e é aí que me reconheço
e nos meus olhos pode haver ainda
um rasgo do riso que nos libertou
do paraíso e da perfeição.
Pouso na mesinha do comboio
a máquina fotográfica
a primeira caneta que o meu pai me deu
(ou com que lhe fiquei, e ele sorriu)
o pequeno livro feito à mão
que alguém me ofereceu
e acredito que se me cruzar comigo
nas ruas desta cidade antiga
talvez pense "eu conheço esta cara"
e lhe sorria, e isso chegue.


(Com um abraço para a Patrícia, claro.)