sábado, 30 de junho de 2018

British Museum

Ao pensar na minha relação com as cidades cheguei à conclusão de que os museus são uma das minhas portas de entrada para uma cidade desconhecida, uma das primeiras coordenadas no mapa interior que vou formando. Londres não foi excepção, e conto o dia que passei sozinha na National Gallery, com a sorte de apanhar uma exposição temporária de Degas, e os meus primeiros impressionistas (sim, comecei a viajar tarde, sim, ainda está praticamente tudo por ver) como um dos mais felizes dos últimos anos.
Também tenho um carinho especial pelo British Museum, porque a Grécia Antiga (e depois, aos poucos, o resto do mundo antigo) foi o meu primeiro amor. Não tenho a certeza do que penso sobre a quantidade de obras que não estão nos países de origem, mas não posso negar que me emociono e agradeço a possibilidade de ver peças a que, de outra maneira, não teria acesso - inclusivamente algumas que se ainda estivessem no país a que pertencem, talvez já tivessem sido dinamitadas... Não tenho respostas definitivas para nada disto. Sei apenas que não estou disposta a menorizar o maravilhamento e a alegria que senti quando vi pela primeira vez um elmo grego, ou as esculturas e frisos do Parténon, ou o Monumento das Nereidas, que me apanhou de surpresa e me deixou muito próxima das lágrimas. Lembro-me que estive sentada durante muito tempo no banco em frente ao templo, sem vontade de tirar os olhos da escultura central, que me ensinou mais acerca do movimento, da dança e da alegria do corpo, que qualquer discoteca. Lembro-me do sentido de ritmo dos frisos do Parténon, quase musicais nas suas repetições e variações.
E lembro-me de olhar para aquelas esculturas e reforçar a minha suspeita de que as ideias e temas fundamentais da humanidade, no fundo, são os mesmos quase desde sempre, e que boa parte da cultura, desde a antiguidade, é um conjunto cada vez mais complexo de iterações, desvios e explorações sobre um conjunto de ideias mais ou menos fixo.* Era uma piada recorrente, na licenciatura de Filosofia, que não há nenhum assunto que não tenha sido já tratado - e melhor - por Platão; e sem querer reduzir dois milénios e meio de cultura ocidental a um "é derivativo", o que seria incrivelmente redutor e injusto, é difícil olhar para as esculturas gregas no British Museum e não pensar que, de certo modo, já ali está dito tudo o que se pode dizer.*
De qualquer modo, uma das melhores iterações desse "tudo que já foi dito antes" está provavelmente, no que toca à escultura, em Rodin, que têm por estes dias uma exposição no British Museum, em diálogo com a escultura grega clássica. Eu queria tanto estar lá, mas não vai dar; ficam então as fotografias que tirei nas minhas visitas. São a minha iteração pessoal desse essencial - elas sim provavelmente muito derivativas e batidas, mas dão de beber à sede e à saudade. À falta de um bilhete de avião, é melhor que nada.


*Ando também a brincar com a teoria de que, se um dos desafios mais problemáticos da modernidade é a destruição da tradição, sem uma reflexão aprofundada acerca da possibilidade de manter os valores de uma cultura sem manter as raízes que lhe deram origem; então um dos desafios mais problemáticos da pós-modernidade é o "excesso interpretativo" que corta qualquer possibilidade de relação com símbolos originais: agregações "puras" de sentido, cuja simples nomeação traduz a sua complexidade, mas que se escondem e se turvam assim que se tentam analisar. Acho que uma parte significativa da arte contemporânea é paradigmática desta incapacidade de ligação com o essencial (num sentido filosófico, não valorativo), de uma espécie de horror ao directo, que a leva a assumir muitas vezes uma pose tão dependente de uma complexidade exponencial, que se aproxima do obscurantismo voluntário. (Esta ideia é um esboço, e sei que só estou a dizer mal algo que de certeza já alguém disse muito melhor que eu, portanto não me batam muito, ok?)
* Mas, por outro lado, não está de certa maneira "tudo dito" em cada obra de arte?





British Museum | The Parthenon Sculptures
British Museum | The Parthenon Sculptures

4 comentários:

  1. Belo texto, Silvertree, partilho muitas das suas observações. Museus, galerias, estátuas e jardins fazem muito do que uma cidade é - são 'urbanidade' no sentido que mais aprecio, civilizacional. Os de Londres que menciona são tesouros imensos, o único sítio onde se podem reviver as nossas origens culturais com alguma autenticidade. Concordo que nessas obras primas já está tudo dito, mas é sempre bom que alguém nos volte a dizer tudo de quando em quando e com novas linguagens, com a linguagem do nosso tempo. Que obras ficarão para dentro de dois séculos alguém apreciar a nossa maneira de dizer 'tudo' ?

    Como diz a máxima de Otto Wagner no pavilhão de Viena, a cada época a sua arte, a cada arte a sua liberdade. O que eu sinto é que a arte egípcia, grega, romana, medieval, renascentista, da corte de Luís XIV, da raínha Vitória ou dos Habsburgos, era muito apreciada, valorizada, na sua época, pelos contemporâneos. Hoje não é assim: valorizamos a arte passada, a sua pureza, o seu dizer "tudo", e achamos a actual impura, fútil, de mau gosto, grosseira. Devemos ter razão. A Europa, hoje, já não é um espaço de arte e cultura, mas sim um espaço de futebol - e uso a expressão 'futebol' num sentido lato, de divertimento e atitude grosseiro que a populaça impôs às classes cultas, à elite, tal como impôs paredes sujas como inovadora "arte de rua". Todo esse futebol não diz "tudo" , como antes - diz, isso sim, nada. Não temos nada para dizer, nem a nós, nem aos descendentes, e isso é trágico, não vamos deixar traço civilizacional. Se a questão fosse haver uma arte da nossa época, vibrante, livre, que os retrógrados não reconhecem, menos mal, com isso vivia eu bem; mas onde está essa liberdade artística do século XXI ? Essa marca que vamos deixar em legado? Quem dera alguém me pudesse dar evidência dela.

    As belíssimas imagens que pública, mesmo silenciosas, falam de mundos, de utopias, de coisas maiúsculas admiráveis. Ir a um Museu é ver a três dimensões um filme de ficção fantástica do passado. Hoje visitei o CEIIA do Porto, uma fábrica de ideias, design e tecnologia que faz sonhar com o futuro, como um Museu do Futuro. Fiquei algo entusiasmado. Será em sítios desses que se está verdadeiramente a fazer a Arte dos nossos dias ?

    [perdoe alguma gralha, e a extensão do comentário: a culpa é do seu texto que me deu tanto gosto ler]

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Mário, muito obrigada pelo seu comentário, não tem de pedir desculpa por nada, é gratificante que aquilo que vou pensando possa gerar ideias e conversas.

      "Concordo que nessas obras primas já está tudo dito, mas é sempre bom que alguém nos volte a dizer tudo de quando em quando e com novas linguagens, com a linguagem do nosso tempo." Concordo consigo, e parece-me ser uma das riquezas da arte, ser assim ao mesmo tempo uma janela para uma época, e universal. Numa linha relativamente parecida, uma das coisas que escrevo muitas vezes, de mim para mim, quando tenho alguma pequena epifania, é que raramente se tratam de coisas realmente novas, que não soubesse já; mas às vezes andam esquecidas, e têm de ser relembradas; talvez não seja um processo assim tão diferente de redescobrir com ajuda da arte de cada época essas coisas ditas desde sempre.

      E partilho a sua desconfiança em relação a esse esvaziamento de qualquer busca (de sentido, referências, beleza, verdade, chamem-lhe o que quiserem) na contemporaneidade, da qual o futebol me parece um símbolo muito triste mas certeiro. Mas acho que é um esvaziamento que vai nos dois sentidos, no qual as nossas supostas elites também partilham boa parte da culpa.
      Continuando no campo da arte, eu percebo muito pouco de arte contemporânea, mas fico sempre com a mesma sensação: gosto de algumas coisas específicas, mas no geral parece-me que não estou a ver arte mas - na melhor das hipóteses - um discurso sobre a arte, tão auto-referencial, recursivo, tão embriagado consigo mesmo e com suas próprias ideias, e tão refém de um "excesso interpretativo", que tenho dificuldade em não partir de má fé, e que tudo me pareça simplesmente narcisista e pomposo. É claro que a arte implica sempre interpretação, e que esse é um dos seus traços essenciais, as múltiplas leituras e possibilidades; mas quando a arte se torna incompreensível, incapaz de causar qualquer reacção, ligação ou interpretação, sem ajuda de um título ou contexto, tenho dificuldade em continuar a intepretá-la como arte. E quanto mais vejo, mais fico com a sensação de que arte contemporânea está pensada para só ser compreensível a quem se move dentro de um meio específico.
      Apesar de tudo não partilho o seu pessimismo, de que a nossa época passará sem deixar qualquer traço civilizacional. Mas creio que, apesar de ter muitas reservas acerca do conceito de arte "engajada", se aquilo que deixamos à História for muito pouco, isso deve-se tanto à "futebolização" e "instragamização" do mundo, como a estas pseudo-elites, que não procuram de modo nenhum o universal, mas aquilo que mais valide o seu umbigo.
      Entretanto, tal como o Mário, continuo a tentar perceber onde poderá estar a Arte dos nossos dias. Para já, continuo sem chegar a grandes conclusões.

      Eliminar
    2. Só uma referência: a Arte de Anselm Kiefer. Que há génio criativo, que nos questiona até ao âmago, não tenho dúvidas. Posso ficar horas a olhar para um quadro dele, tentando ver, que é isso que "consumir arte" pode ser: escutar tentanto ouvir, ler tentando decifrar...
      Mas se Kiefer for exemplo quase único, estamos mal: o nosso legado será altamente depressivo. Os futuros humanos vão pensar que foi uma época terrível, terrível. E será ?

      Eliminar
    3. Obrigada pela referência, não conhecia e pareceu-me muito interessante.

      Faço muitas vezes esse exercício de tentar imaginar como é que o futuro olhará para o nosso presente, que tipo de opiniões formará. Confesso que quanto mais penso nisso, menos certeza tenho. Será, só para começar, que aquilo que vai ficar para o futuro e aquilo que vai ser esquecido, corresponde sequer marginalmente ao que hoje consideramos importante ou trivial? Quantos escritores que foram muito lidos na sua época é que hoje são completamente desconhecidos? Tenho muitas vezes essa experiência, e de cada vez há uma sensação de perda muito grande - por cada escritor (artista, compositor) que é resgatado ao esquecimento por um golpe de sorte, pelo gosto específico de um editor, por uma moda que surge nem se sabe bem porquê, quantos é que nunca vou chegar a descobrir?
      Partimos geralmente do princípio que a peneira do tempo é boa, mas numa era cada vez mais acelerada, e com um gosto especial em cristalizar fenómenos culturais que, pela sua própria natureza, deviam ser transitórios, o jogo de imaginar o que fica e o que vai parece-me cada vez mais especulativo.

      Eliminar