segunda-feira, 9 de abril de 2018
terça-feira, 3 de abril de 2018
Dá-lhes, Cortázar!
"O subdesenvolvimento tem uma das suas facetas no facto de sermos tão mesquinhos relativamente a tudo o que diz respeito à fachada cultural, às aparências e à placa com nome à porta da cultura. Sabemos que Dylan se diz Dilan e não Dailan como dissemos da primeira vez (e olharam-nos ironicamente, ou corrigiram-nos, ou cheirou-nos que alguma coisa estava mal); sabemos exactamente como se deve pronunciar Caen e Laon, Sean O'Casey e Gloucester. Tudo isso é muito bonito, tal como ter as unhas limpas e usar desodorizante. Mas o resto começa depois, ou não começa. Para muitos daqueles que sorriem condescendentemente na direcção de Lezama, não começa nem antes nem depois, mas que têm as unhas perfeitas, lá isso garanto-vos.
À ironia defensiva que se apoia em falências de superfície, soma-se a que há-de provocar em muitos a insólita ingenuidade que vem à superfície em muitos momentos da narrativa de Lezama. No fundo, é por amor a essa ingenuidade que aqui falo dele; sei da sua eficácia penetrante mais além de qualquer cânone escolar: enquanto muitos procuram, Parsifal encontra; enquanto muitos falam, Mishkin sabe."
Julio Cortázar, A Volta ao Dia em 80 Mundos (Cavalo de Ferro)
Mais que um elogio ao escritor cubano José Lezama Lima (que nunca li), este texto é um antídoto contra a pretensão no mundo literário, e uma apologia da leitura enquanto exercício de abertura e maravilhamento: "a minha própria leitura de Paradiso, tal como de tudo o que eu conheço de Lezama, partiu de não esperar algo pré-determinado, de não exigir novela, e por isso a adesão ao seu conteúdo fez-se sem tensões inúteis, sem esse protesto petulante que nasce ao abrir-se um armário para tirar de lá uma marmelada e encontrar-se no seu lugar três casacos de fantasia." Uma pérola.
Julio Cortázar, A Volta ao Dia em 80 Mundos (Cavalo de Ferro)
Mais que um elogio ao escritor cubano José Lezama Lima (que nunca li), este texto é um antídoto contra a pretensão no mundo literário, e uma apologia da leitura enquanto exercício de abertura e maravilhamento: "a minha própria leitura de Paradiso, tal como de tudo o que eu conheço de Lezama, partiu de não esperar algo pré-determinado, de não exigir novela, e por isso a adesão ao seu conteúdo fez-se sem tensões inúteis, sem esse protesto petulante que nasce ao abrir-se um armário para tirar de lá uma marmelada e encontrar-se no seu lugar três casacos de fantasia." Uma pérola.
Idiotice
"Porém, já muita gente me disse que o meu entusiasmo é uma prova de imaturidade (de idiotice, querem eles dizer, mas escolhem as palavras) e que não nos podemos entusiasmar assim por causa de uma teia que brilha ao sol, uma vez que se uma pessoa incorre em semelhantes excessos por causa de uma teia de aranha cheia de orvalho, o que é que vai guardar para a noite em que houver King Lear? A mim isso surpreende-me um pouco, porque na verdade o entusiasmo não é uma coisa que se gaste quando se é realmente idiota, gasta-se quando uma pessoa é inteligente e tem a noção dos valores e da historicidade das coisas, e é por isso que mesmo que eu ande a correr de um lado para o outro no Bois de Boulogne para ver melhor o pato, isso não me vai impedir de nessa mesma noite dar saltos enormes de entusiasmo se gostar da forma como Fischer Dieskau canta. Agora que penso nesse assunto, a idiotice deve ser isso: o poder entusiasmar-se a toda a hora com qualquer coisa de que uma pessoa goste, sem que um desenhito numa parede tenha de se ver diminuído pela memória dos frescos de Giotto em Pádua. A idiotice deve ser uma espécie de presença ou de recomeço constante: agora gosto desta pedrinha amarela, agora gosto de L'année dernière à Marienbad, agora gosto de ti, ratita, agora gosto dessa locomotora incrível a bufar na Gare de Lyon, agora gosto desse cartaz arrancado e sujo. Agora gosto, gosto tanto, agora sou eu, um eu reincidente, idiota perfeito na sua idiotice que não sabe que é idiota e desfruta perdido no seu prazer, até que a primeira frase inteligente o devolva à consciência da sua idiotice e o faça procurar apressadamente um cigarro com as mãos desajeitadas, olhando para o chão, compreendendo e às vezes aceitando porque um idiota também tem de viver, claro que até outro pato ou outro cartaz, e assim sempre."
Julio Cortázar, A Volta ao Dia em 80 Mundos (Cavalo de Ferro)
Julio Cortázar, A Volta ao Dia em 80 Mundos (Cavalo de Ferro)
Do sentimento de não estar totalmente (I)
"Serei sempre uma criança para muitas coisas, mas uma dessas crianças que desde o princípio trazem dentro de si o adulto, de maneira que quando o monstrinho chega realmente a adulto, acontece que este traz também dentro de si a criança, e nel mezzo del camin dá-se uma coexistência raramente pacífica de pelo menos duas aberturas para o mundo.
Tudo isto pode entender-se metaforicamente, mas em qualquer caso é indicador de um temperamento que não renunciou à visão pueril como preço da visão adulta, e esta justaposição que faz o poeta e talvez o criminoso, assim como o cronópio e o humorista (questão de doses diferentes, de acentuação aguda ou esdrúxula, de escolhas: agora brinco, agora mato) manifesta-se pelo sentimento de não estar totalmente em nenhuma das estruturas, das teias que a vida arma e nas quais somos simultaneamente aranha e mosca. (...)
Escrevo por defeito, por deslocação; e como escrevo a partir de um interstício, estou sempre a convidar os outros a procurarem os seus e a olharem por eles, o jardim onde as árvores dão fruto que, obviamente, são pedras preciosas. O monstrinho continua firme no seu lugar."
Julio Cortázar, A Volta ao Dia em 80 Mundos (Cavalo de Ferro)
Julio Cortázar, A Volta ao Dia em 80 Mundos (Cavalo de Ferro)
segunda-feira, 2 de abril de 2018
treze anos de espera
Há treze anos que espreitava pelas janelas deste prédio devoluto. Hoje - infelizmente e finalmente - encontrei uma porta aberta.
domingo, 1 de abril de 2018
Páscoa 2018
A Vigília Pascal na Capela do Rato como água para a sede. Fica a alegria genuína e contagiante daquela comunidade; fica a possibilidade, se não de uma Casa, pelo menos de um abrigo, uma Estalagem a meio do caminho.
Da homilia, isto: a Ressurreição como um Mistério que brilha no vazio e no silêncio; a Ressurreição que não é anunciada por sábios mas por "personagens improváveis".
E fica sempre esta imagem que me apanhou de surpresa na primeira vez que lá entrei, e que nunca mais me largou. Ou como escreveu Lorca, acerca de uma coisa muito diferente e exactamente igual: "Aqui está; olha. Eu tenho o fogo nas minhas mãos." Páscoa, este ano, é voltar a acreditar nessa possibilidade de Luz.
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