terça-feira, 11 de maio de 2021

In the light from conflagrations

Fiquei a conhecer há dias a história de Lidice, aldeia desaparecida da antiga Boémia. Como resposta à Operação Anthropoid (tentativa de assassinato do oficial nazi Reinhard Heydrich, por membros da resistência Checa, em 1942), a aldeia foi apagada do mapa. E o termo "apagada" não é um exagero: todos os homens com mais de quinze anos foram executados; as mulheres foram enviadas para campos de concentração, depois de terem sido feitos abortos às que estavam grávidas; também as crianças (com excepção de sete, entregues a famílias das SS para serem "germanizadas)" foram enviadas para campos de concentração; pelo menos 82 foram assassinadas numa câmara de gás. Todos os animais, de estimação ou do campo, foram abatidos. A cidade foi incendiada e arrasada com explosivos, e os escombros foram removidos. A estrada e o rio que passavam pela aldeia foram desviados. O cemitério foi destruído, tal como os restos mortais de todos os que lá estavam enterrados. Estes eventos foram filmados e difundidos com orgulho.
O catálogo de horrores dos nazis é imenso, mas eu não consigo parar de pensar em Lidice. Camus diz que o regime nazi, para lá da aparência de racionalidade fria e brutal, era profundamente irracional, e acho que concordo, e que é isso que me perturba tanto aqui. Em primeiro lugar, porque a racionalidade tem limites, mas o irracional não. Um ódio assim inunda tudo, consome tudo, oblitera tudo; não deixa espaço para mais nada a não ser para si mesmo. Lidice não passou a ser um espaço vazio; ao destruir qualquer prova da sua existência, os nazis encheram esse espaço com o seu ódio e fanatismo até não caber mais nada. Lidice, a aldeia que não existe, é um dos lugares mais cheios do mundo, até à claustrofobia, até ao sufoco. 
Em segundo lugar, porque embora seja fácil termos a certeza de que nunca seriamos capazes de fazer ou compactuar com nada sequer remotamente semelhante, penso que todo o ódio obedece a mecanismos semelhantes, seja o horror nazi ou as meras larvas - sementes do ódio - da mesquinhez, do ressentimento, do cansaço - de quaisquer que sejam as larvas que crescem no coração de cada um, sem que lhes atribuamos importância. É claro que o tamanho do ódio, o seu contexto e consequências, importam; mas reconheço em tantas das suas manifestações o mesmo gesto básico e irracional de apagamento violento daquilo que nos afronta, seja pela destruição, fuga ou indiferença. E se acham que estão isentos dos mecanismos do ódio, se não reconhecem que a sua semente se pode pôr em movimento por tão pouco, tão mesquinhamente pouco, parabéns, as vossas larvas agradecem-vos. Eu penso no meu cansaço, na minha fuga, em certos pesadelos recorrentes, e parece-me que "eu nunca" é uma boa maneira de já estar a meio caminho.
A Segunda Guerra Mundial passou, mas não sei se alguma vez deixámos de viver, como diz Camus acerca dessa altura, à luz das explosões - e à sombra dos negrumes que elas nos revelaram acerca de nós mesmos. Seria bonito, mas escolher a luz de Tipasa ou de Sophia não chega para exorcizar o ódio. Se é necessário gravar Tipasa na pele, talvez seja necessário gravar também Lidice. Uma em cada pulso, uma de cada lado do coração.