"How to describe it then? Whether one is at rest or in motion, what matters is not what lies ahead, what one sees, hears, wants, takes, masters. It forms a horizon, a semicircle before one, but the ends of this semicircle are joined by a string, and the plane of this string goes right through the middle of the world. In front, the face and hands look out of it; sensations and strivings run ahead of it, and no one doubts that whatever one does is always reasonable, or at least passionate. In other words, outer circumstances call for us to act in a way everyone can understand; and if, in the toils of passion, we do something incomprehensible, that too is, in its own way, understandable. Yet however understandable and self-contained everything seems, this is accompanied by an obscure feeling that it is only half the story. Something is not quite in balance, and a person pressed forward, like a tightrope walker, in order not to sway and fall. And as he presses on through life and leaves lived life behind, the life ahead and the life already lived form a wall, and his path in the end resembles the path of a woodworm: no matter how it corkscrews forward or even backward, it always leaves an empty space behind it. And this horrible feeling of blind, cutoff space behind the fullness of everything, this half that is always missing even when everything is a whole, this is what eventually makes one perceive what one calls the soul."
Quanto mais leio O Homem Sem Qualidades mais concordo que este é um dos grandes livros do Ocidente, e especificamente do século passado. Musil é um observador brilhante tanto da natureza humana, como das suas declinações próprias da modernidade - e a tal ponto que, lido hoje, por vezes parece presciente, como se tivesse sido capaz não só de descrever a sua época, como de prever nela a semente de uma quantidade de traços que me parecem facilmente reconhecíveis como específicos, ou pelo menos sintomáticos, da nossa pós-modernidade.
Esta subversão constante é genial não só porque quebra o tom de maneira inesperada, mas porque mantém o leitor em bicos de pés, impedindo-o de procurar em cada uma das reflexões apresentadas a "verdadeira opinião" do autor/narrador, ou a "verdade final" do livro. De facto, Musil parece-me especialmente consciente de que uma das tentações mais típicas do leitor, especialmente quando confrontado com uma obra com um carácter fortemente reflexivo, é procurar uma chave de resposta, algo que responda cabalmente às perguntas levantadas, e que lhe permita aderir (ou repudiar) pessoal e taxativamente às reflexões apresentadas - dizer "sim, isto. Eu concordo com isto, revejo-me nisto" ou "Sim, é esta, é esta a personagem que sabe". E como sempre fazem os melhores escritores, Musil responde a esta tentação do leitor abrindo duas perguntas novas por cada resposta dada - ou como diria Cortázar, num dos meus textos favoritos, "como escrevo a partir de um interstício, estou sempre a convidar os outros a procurarem os seus e a olharem por eles". É que se por um lado é essa relação de empatia entre livro (escritor?) e leitor que nos torna leitores e escritores, por outro lado aquilo que nos torna bons leitores e bons escritores é a noção de que é através dos interstícios que se avista "o jardim onde as árvores dão frutos que, obviamente, são pedras preciosas" (Cortázar novamente).
A particularidade de Musil que tem tornado esta leitura tão fascinante é a forma como este abrir de novos caminhos, depois de cada reflexão aparentemente cabal, é feito através de um humor que parece ao mesmo tempo profundamente irónico e de uma franqueza desarmante, mesmo quando é feito com subversão e dinamite. Fica-se com a impressão de que não é apenas fruto de uma escolha estilística, que procura simplesmente o maior efeito, mas da escolha de um escritor que decidiu ir tão longe quanto podia nas suas reflexões, sem se deixar cair na tentação de se levar demasiado a sério. Não sei se esta impressão corresponde ao que Musil realmente pensava sobre o seu trabalho e sobre o papel do escritor (ainda não li o suficiente para isso), mas sei que bastou para ganhar o meu entusiasmo.
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O capítulo "Ideals and moralities are the best means for filling that big hole called soul" é o 46 e foi até agora um dos melhores do livro, arrasando sem piedade a maneira "pequenina" com que a maioria de nós se relaciona, na prática, com os nossos pretensos ideais e ética pessoal, e como usamos essa ética pessoal como desculpa para fazer menos, em vez de fazer mais. Eu tenho andado muito às voltas com as relações entre liberdade, ética pessoal e criação, e talvez volte a este capítulo aqui no blogue, se conseguir pôr as minhas ideias em ordem em tempo útil.
Ando em choque frontal com todas estas coisas. *
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