terça-feira, 3 de abril de 2018

Do sentimento de não estar totalmente (I)

"Serei sempre uma criança para muitas coisas, mas uma dessas crianças que desde o princípio trazem dentro de si o adulto, de maneira que quando o monstrinho chega realmente a adulto, acontece que este traz também dentro de si a criança, e nel mezzo del camin dá-se uma coexistência raramente pacífica de pelo menos duas aberturas para o mundo.
Tudo isto pode entender-se metaforicamente, mas em qualquer caso é indicador de um temperamento que não renunciou à visão pueril como preço da visão adulta, e esta justaposição que faz o poeta e talvez o criminoso, assim como o cronópio e o humorista (questão de doses diferentes, de acentuação aguda ou esdrúxula, de escolhas: agora brinco, agora mato) manifesta-se pelo sentimento de não estar totalmente em nenhuma das estruturas, das teias que a vida arma e nas quais somos simultaneamente aranha e mosca. (...)
Escrevo por defeito, por deslocação; e como escrevo a partir de um interstício, estou sempre a convidar os outros a procurarem os seus e a olharem por eles, o jardim onde as árvores dão fruto que, obviamente, são pedras preciosas. O monstrinho continua firme no seu lugar." 

Julio Cortázar, A Volta ao Dia em 80 Mundos (Cavalo de Ferro)

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