terça-feira, 3 de abril de 2018

Dá-lhes, Cortázar!

"O subdesenvolvimento tem uma das suas facetas no facto de sermos tão mesquinhos relativamente a tudo o que diz respeito à fachada cultural, às aparências e à placa com nome à porta da cultura. Sabemos que Dylan se diz Dilan e não Dailan como dissemos da primeira vez (e olharam-nos ironicamente, ou corrigiram-nos, ou cheirou-nos que alguma coisa estava mal); sabemos exactamente como se deve pronunciar Caen e Laon, Sean O'Casey e Gloucester. Tudo isso é muito bonito, tal como ter as unhas limpas e usar desodorizante. Mas o resto começa depois, ou não começa. Para muitos daqueles que sorriem condescendentemente na direcção de Lezama, não começa nem antes nem depois, mas que têm as unhas perfeitas, lá isso garanto-vos.
À ironia defensiva que se apoia em falências de superfície, soma-se a que há-de provocar em muitos a insólita ingenuidade que vem à superfície em muitos momentos da narrativa de Lezama. No fundo, é por amor a essa ingenuidade que aqui falo dele; sei da sua eficácia penetrante mais além de qualquer cânone escolar: enquanto muitos procuram, Parsifal encontra; enquanto muitos falam, Mishkin sabe."
Julio Cortázar, A Volta ao Dia em 80 Mundos (Cavalo de Ferro)


Mais que um elogio ao escritor cubano José Lezama Lima (que nunca li), este texto é um antídoto contra a pretensão no mundo literário, e uma apologia da leitura enquanto exercício de abertura e maravilhamento: "a minha própria leitura de Paradiso, tal como de tudo o que eu conheço de Lezama, partiu de não esperar algo pré-determinado, de não exigir novela, e por isso a adesão ao seu conteúdo fez-se sem tensões inúteis, sem esse protesto petulante que nasce ao abrir-se um armário para tirar de lá uma marmelada e encontrar-se no seu lugar três casacos de fantasia." Uma pérola.

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